D77AD8AFA8AA4812164F3AADA00D3E6FEF5A97663BF1201817F36AD1255A03B5Marcos Catelli Rocha*

A história do estado do Acre, localizado na região ocidental da Amazônia brasileira, é marcada pela luta popular em defesa do seu território e da floresta.

A história do estado do Acre, localizado na região ocidental da Amazônia brasileira, é marcada pela luta popular em defesa do seu território e da floresta. A partir da década de 1970, o estado tornou-se referência no Brasil e no mundo com a mobilização de lideranças comunitárias, organizações e movimentos socioambientais em defesa da floresta e de seus habitantes. Lideranças indígenas, seringueiros e extrativistas lutaram para garantir os direitos, os territórios e os recursos naturais dos povos da floresta. Um dos resultados dessa luta foi a composição atual da área do estado formada por 45,81% de áreas protegidas, sendo aproximadamente 15% de Terras Indígenas (TIs) que abrigam cerca de 18 mil índios das famílias Pano, Aruak e Arawá.

Desde a sua fundação em 1979, a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre) vem apoiando os povos indígenas do Acre em algumas de suas lutas pela conquista e o exercício de seus direitos coletivos por meio de ações que articulem a gestão territorial e ambiental das terras indígenas, a educação intercultural e bilíngue e as políticas públicas. No ano de 1996, iniciou-se o curso de formação de Agentes Agroflorestais Indígenas (AAFIs), como consequência do projeto “Uma Experiência de Autoria”, que se tornou marca registrada dos………………

processos educativos desenvolvidos pela CPI-Acre desde a década de 80 com professores e agentes de saúde.
A proposta político-pedagógica de formação dos AAFI segue os princípios da educação intercultural que prioriza, além das técnicas e conceitos científicos sobre o uso, manejo e a conservação dos recursos naturais, os saberes indígenas sobre o ‘meio ambiente’. No currículo dos AAFIs estão previstas quatro modalidades de formação: cursos modulares realizados anualmente no Centro de Formação dos Povos da Floresta (CFPF), localizado na zona rural da cidade de Rio Branco, oficinas itinerantes realizadas nas aldeias, assessorias técnicas para o acompanhamento do trabalho desenvolvido pelos AAFIs nas terras indígenas, e viagens de intercâmbio para que os AAFIs conheçam experiências desenvolvidas em outras realidades.

A relação dos povos indígenas com a conservação dos recursos naturais e o incremento da biodiversidade das áreas manejadas é histórica e complexa, envolvendo conhecimentos de diferentes povos, usos ritualísticos, alimentares e práticas de manejo e conservação. A agroecologia como ciência e movimento que se contrapõe ao modelo tecnológico vigente buscou referência nessas práticas tradicionais de manejo dos agroecossistemas. Dessa forma, o uso dos recursos naturais realizado pelos povos indígenas passou a ser valorizado e sistematizado, servindo como base nesse diálogo de saberes e troca de conhecimentos. O papel da agroecologia na formação dos AAFIs não é transmitir um pacote de técnicas e conceitos, mas desenvolver em conjunto, a partir do respeito às diferentes culturas, conhecimentos e práticas dos povos indígenas.

Os AAFIs exercem a função de mediadores da gestão territorial e ambiental das TIs, sendo os atores que mobilizam as comunidades para a reflexão e o desenvolvimento das estratégias e atividades previstas nos Planos de Gestão Territorial e Ambiental, acordos comunitários construídos entre os indígenas de cada terra indígena que fortalecem o uso e conservação da biodiversidade local. Hoje, os AAFIs realizam trabalhos de ATER (Assistência Técnica e Extensão Rural) junto às comunidades, no fortalecimento da segurança alimentar e nutricional por meio da diversificação da produção, com a implementação e manejo dos quintais e Sistemas Agroflorestais (SAFs), criação de animais domésticos e silvestres, enriquecimento de capoeiras com espécies de interesse, implantação de hortas orgânicas, manejo de resíduos sólidos, vigilância e monitoramento das TIs, entre outros.

Organização política dos AAFIs

Em 2002, foi criada a AMAAIAC (Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre) para organizar os trabalhos da categoria e realizar a representação política dos AAFIs junto ao poder público, organizações indígenas, indigenistas e parceiros. Desde então a AMAAIAC vem realizando uma série de projetos de apoio ao trabalho dos AAFIs e a representação política destes profissionais da floresta em diferentes espaços de articulação política ligados à conservação socioambiental.

Em 2009, a proposta político-pedagógica e curricular de formação profissional e técnica, integrada à educação básica de agentes agroflorestais indígenas do Acre, foi aprovada pelo Conselho Estadual de Educação do Acre, que validou o currículo e reconheceu a escola CFPF como a única instituição credenciada para formação dos AAFIs no Acre. O processo de formação dos AAFIs para a gestão ambiental das TIs no Acre foi pioneiro na Amazônia e no Brasil, influenciando experiências similares promovidas por outras organizações indígenas e indigenistas e, consequentemente, a construção da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial em Terras Indígenas (PNGATI), promulgada em junho 2012.

O Centro de Formação dos Povos da Floresta

A CPI-Acre possui uma área de 31,5 hectares, a 12 km do centro de Rio Branco, onde fica a sede da instituição e o CFPF. A área, adquirida em 1994, contava com poucos plantios, alguns fragmentos florestais e muitas áreas de pastagem degradada, apresentando-se como um desafio para evidenciar a viabilidade dos SAFs para recuperação produtiva das áreas alteradas. Portanto, após 22 anos de intenso trabalho agroflorestal na formação dos indígenas, a área do CFPF está reflorestada. Hoje, o CFPF possui nove áreas de SAFs com cerca de 4 hectares e 7881 plantas de 188 espécies (frutíferas, florestais, anuais, sagradas, medicinais e ornamentais). As espécies frutíferas contam com maior produção e são beneficiadas e utilizadas na alimentação dos participantes nas atividades realizadas no CFPF.

O CFPF também conta com outros modelos demonstrativos de produção agroecológica adaptados à realidade das aldeias, como uma área de horta orgânica, onde são plantadas espécies tradicionalmente utilizadas pelos povos indígenas, bem como aquelas incorporadas ao cardápio dos indígenas pós-contato com os brancos. Os AAFIs também trabalham no açude para criação de peixes, em dois criatórios de quelônios, e com meliponicultura e avicultura (pato, marreco, peru e galinha). A ideia é estimular uma alternativa à caça para disponibilização de proteína animal nas comunidades com escassez de animais.

Avanços, desafios e perspectivas

O trabalho dos AAFIs ainda não conta com uma política pública permanente e efetiva que garanta recursos para a sua formação e prestação de serviços às suas comunidades. O governo do Acre apoia o trabalho dos AAFIs, no entanto, o movimento luta há muitos anos pelo reconhecimento da categoria, com cargo e remuneração pelo serviço que desempenham junto às suas comunidades. O movimento reclama da instabilidade de políticas e projetos que beneficiam as ações de produção agroecológica dos povos indígenas, sobretudo, nesse contexto de crise política e econômica, onde os recursos de benefícios para as minorias são os primeiros a serem cortados.

No movimento agroecológico estadual, a CPI-Acre e a AMAAIAC fazem parte do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), espaço de discussão interinstitucional da agenda de segurança alimentar e nutricional no Acre. Porém, pretendem apoiar mais ativamente junto à outras organizações não-governamentais a construção de uma política estadual de agroecologia e produção orgânica. No âmbito mais regional, as duas instituições também participam da ANA-Amazônia, espaço da Articulação Nacional de Agroecologia para troca de experiências e articulações políticas para o fortalecimento da agroecologia na região norte do país.

Por outro lado, esses movimentos que lutam pela valorização da agricultura familiar e pelo reconhecimento dos conhecimentos indígenas no manejo dos recursos naturais, estão cada vez mais ameaçados. Nos últimos anos, o poder político do agronegócio, representado no Congresso Nacional pela bancada ruralista, cada vez mais aliada a setores do Executivo, vem prejudicando os povos indígenas em um cenário de retrocesso aos seus direitos conquistados na Constituição Federal. A orientação política desenvolvimentista, que privilegia grandes projetos de infraestrutura e integração na Amazônia, também proporcionam o avanço da fronteira econômica causando impactos nas terras indígenas.

Assim, o grande desafio hoje é o estabelecimento de políticas públicas que promovam a conservação das florestas e os saberes tradicionais dos seus povos com mecanismos que de fato reconheçam os seus distintos modos de vida, revertendo a tendência vigente da padronização das políticas para povos indígenas e outras minorias.

Os povos indígenas do Acre e seus AAFIs detêm grande riqueza genética no manejo da agrobiodiversidade, que deve ser valorizada com ações que contribuam para o fortalecimento da soberania alimentar em seus territórios. Também realizam um importante trabalho na manutenção dos serviços ambientais, que deve ser reconhecido como fundamental no enfrentamento ao preocupante cenário global das mudanças climáticas.

Os AAFIs em números

Atualmente existem no Acre 179 AAFIs, de 14 povos, em 30 TIs, 
pertencentes a duas famílias linguísticas: Pano e Aruak. Entre os Pano 
encontram-se os Huni Kui (Kaxinawá), Nawa, Jaminawa, Yawanawá, Katukina, 
Shawãnawá, Shanenawa, Jaminawá Arara, Apolima-Arara, Kontanawa, Nukini e 
Puyanawá; e entre a família Aruak, encontram-se os Ashaninka e 
Manchineri. Essas TIs estão distribuídas em 11 municípios do Acre e 
possuem uma área agregada de 2.083.217 hectares. Juntas, compõem uma 
população aproximada de 17 mil indivíduos que habitam regiões de fronteira Brasil-Peru.