Prisão de prefeito em um cepo por má gestão faz parte de castigos previstos pelos próprios povos originais e que são aceitos na legislação

Uma decisão da Justiça na Bolívia puniu o prefeito Javier Delgado, de San Buenaventura, por má gestão. A pena? uma hora com a perna presa em um cepo usado para imobilizar animais.nParece estranho afirmar que se trata de uma decisão judicial, pois esse tipo de castigo não faz parte de punições previstas no direito moderno ocidental. Mas ela não está errada: no país andino, há um sistema jurídico próprio dos povos indígenas.

Por decisão de integrantes da etnia Tacana, Delgado sofreu a punição pela terceira vez, segundo a mídia boliviana. Ele já havia cumprido a pena no cepo em 2015 e 2016 por promessas de campanha não cumpridas. “Esse castigo, mais que físico, é moral”, afirmou o mandatário. “Querem me mostrar como uma criança que está sendo castigada por ter feito algo ruim”.

A valorização da autonomia indígena é uma marca do governo de Evo Morales. Desde sua chegada ao poder em 2005, o país tem buscado um novo pacto social que leve à “descolonização” do Estado Boliviano. Em seu primeiro governo, foram implantadas uma série de medidas para incluir os povos indígenas dentro da estrutura de poder governamental. A nova constituição boliviana aprovada em 2009 reforçou essa disposição.

Segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), 62% da população boliviana é de origem indígena, ou 6,2 milhões de cidadãos. Na América Latina, é o país com maior concentração de descendentes de povos originais, seguido pela Guatemala.

Na chamada Ley Del Organo Judicial, estão previstos quatro tipos de jurisdição na Bolívia. A primeira é a “Ordinaria”, que compreende a corte superior e os tribunais de justiça. Além delas, há também as jurisdições especiais, a ambiental e, por fim, a chamada Jurisdicción Indígena Originaria Campesina (JIOC), que segue normas e procedimentos próprios.

Cada povo indígena na Bolívia pode ter seus próprios castigos e punições. No distrito de Oruro, indígenas da etnia Totora Marka, por exemplo, adotam diversas sanções no mínimo curiosas.

De acordo o estudo Normas, Procedimientos Y Sanciones de La Justicia Indígena en Bolívia y Perú, elaborado pela Comisión Andina de Juristas, algumas das sanções previstas pelos integrantes da etnia são dormir em um quarto cheio de urtigas e outras plantas que causam coceira, dormir em um cemitério ao lado dos cadáveres, ser deixado no meio de matas e bosques para ser devorado por animais ferozes, ser enterrado vivo até metade do corpo para reflexão. Os adúlteros têm os cabelos cortados de apenas um lado da cabeça, e são obrigados a dar uma volta na praça para serem vistos pelos outros moradores.

A lei prevê que os moradores julguem apenas delitos menos graves. Roubos e homicídios em tese têm de ser encaminhados à Justiça Comum. No país, o órgão que regula as tensões entre o sistema judicial indígena e o comum é o chamado Tribunal Constitucional Plurinacional. O nome é bastante sugestivo, pois demonstra como a Bolívia encara sua diversidade nacional em seu Estado ao incluir as tradições dos povos originais.

A nova Constituição boliviana prevê a jurisdição indígena como parte integrante do Judiciário do país, além de reconhecer que os povos podem exercer suas funções judiciais por meio de suas próprias autoridades e aplicar seus princípios, valores culturais, normas e procedimentos particulares.

Isso não signifca que a Justiça comum do país se abstenha de qualquer decisão judicial indígena. A legislação permite ao ordenamento jurídico comum interferir caso entenda haver um desrespeito aos direitos fundamentais.

No caso do prefeito, punido pela terceira vez, a decisão comunitária não sofreu essa intervenção. Isso pode ocorrer caso a Justiça comum considere se tratar de um excesso contra Delegado. A julgar pela reincidência e aparente naturalidade ao cumprir sua pena (o mandatário fumava um cigarro enquanto aguardava o fim da punição), é improvável que ele recorra.

Fonte: Carta Capital