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Após anos de silenciamento dos povos tradicionais no Uruguai, mulheres lideram luta pelo resgate da cultura indígena no país, analisa ativista

Mónica Michelena Díaz, de 53 anos, descobriu sua descendência charrua aos 18 anos. A busca pela narrativa de sua família se confunde com o resgate da história do próprio país: no mesmo período, comunidades começaram a se organizar para reafirmar a existência de povos indígenas no Uruguai, por anos invisibilizados no país.

Mónica é integrante do Conselho da Nação Charrua (Conacha), criado em 2005, e ex-assessora da Unidade Étnico-Racial do Ministério de Relações Exteriores. Para ela, a luta indígena se mescla, a todo momento, com uma resistência feminina: “É a partir das mulheres que surge toda essa luta indígena do Uruguai”, disse em entrevista à Agência Pública. “Somos as que guardamos as memórias das famílias, como foi cruel o genocídio e o desmembramento dos nossos povos.”A ativista teme que o avanço do conservadorismo na América Latina ponha em xeque conquistas do movimento indígena e feminista no país, até então o reduto progressista da região. No início desta semana, o Uruguai encerrou um ciclo de governos de esquerda com a posse do novo presidente Luis Lacalle Pou, no dia 1º de março. O novo chefe de Estado é do Partido Nacional, caracterizado como centro-direita.

Com o fim de 15 anos de governos da coalizão de esquerda Frente Ampla, com dois mandatos de Tabaré Vásquez e um de José “Pepe” Mujica, a ativista pontua que o movimento feminista “está vigilante” para garantir a manutenção e o aprimoramento de legislações avançadas que o país implementou, como o aborto legal nas 12 primeiras semanas de gestação, assegurado por lei em 2012. “O que tememos agora com o novo governo e Parlamento é o corte de muitos avanços nos direitos humanos, especialmente com relação aos direitos das mulheres. Este é nosso temor e nossa resistência. [A mobilização] do 8 de Março deste ano se dá nesse momento de mudança de governo e nessa encruzilhada.”

Com relação aos territórios indígenas, Mónica mostra preocupação com a atuação de empresas transnacionais e com o aumento do uso de agrotóxicos nessas áreas. “Quando tocam em nossos territórios, nos tocam a vida”, sentencia a militante indígena.

Como você iniciou sua trajetória como ativista?

Meu ativismo é indígena e político há mais de 30 anos. Minha história de ativismo surge na década de 1980, já no fim da ditadura [militar].

Em 2005, fundamos o Conselho da Nação Charrua, o Conacha, para ter uma organização em nível nacional que reúna todas as comunidades e associações de todo o território uruguaio charrua, para termos uma só voz frente a nossas demandas com o Estado.

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Um dos objetivos mais primordiais, desde que fundamos o Conacha em junho de 2005, é que o Estado uruguaio reconheça a presença de povos indígenas em seu território, algo que não aconteceu até o momento; e que ratifique o Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho [OIT], sobre os direitos dos povos indígenas, o que tampouco alcançamos ainda.

Existe uma ideia equivocada, que se espalhou pelo continente, de que, por exemplo, na Argentina não há presença de negros; no Uruguai também não teria uma presença forte dessas minorias, como indígenas. Como essa ideia foi construída e como o trabalho para quebrar com essa noção?

Eu acho que essa invisibilização a que fomos submetidos, os povos indígenas do Uruguai, é uma forma de violência estrutural que se gestou em 1831, no primeiro governo da República Oriental do Uruguai. Em 1831, o primeiro presidente executou um genocídio contra meu povo – no entanto, a tentativa de extermínio não se completou efetivamente. Houve algumas centenas de sobreviventes desse massacre na cidade de Salsipuedes – mulheres, crianças e idosos. Esses remanescentes foram separados, trabalharam em regime de escravos em fazendas. E assim fomos separados uns dos outros e desmembrados como povo.

Desde a década de 1980, estamos nos levantando lentamente e erguendo nossa voz contra toda essa política de Estado que se produziu, que não apenas foi genocida, mas também produziu um etnocídio cultural e também um silenciamento da nossa própria existência. Foram nos silenciando através das políticas educativas e sociais que afirmavam ser o Uruguai um país sem índios. Essa noção foi construída a partir do próprio Estado para poder erradicar “o problema índio”. Então, esse é um conceito que estamos trabalhando para superar. Estamos organizados e, juntamente com os irmãos charruas da Argentina, estamos trabalhando mais de 20 anos, juntos, para de uma vez por todas conseguir que se reconheça a presença e os direitos dos povos indígenas.

Houve um aumento, nos últimos anos no Brasil, de um processo de autoidentificação das populações negras e indígenas e também um crescimento de movimentos identitários. Como é essa questão no Uruguai?

No Uruguai, desde a formação do Conacha, passamos a ter incidência no Instituto Nacional de Estatística. Conseguimos que no novo censo, realizado em 2011, se perguntasse sobre a ascendência. Nesse mesmo ano, fizemos uma campanha de autoidentificação. No marco do censo, essa campanha passou por todos os 19 departamentos, por todo o país. E o que alcançamos, com uma campanha de televisão e na rádio, foi que as pessoas começassem se autoidentificar com sua ancestralidade indígena.

Nesse contexto, cerca de 5% dos uruguaios expressaram no último censo que tinham descendência indígena. E 2,4% declararam que sua principal ascendência era indígena. Para nós, foi um grande avanço, para que a gente possa seguir lutando por nossos direitos. É muito importante que as pessoas indígenas se autoidentifiquem. E 2,4% não é uma cifra menor. Tanto que a Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe] reconhece Uruguai com dois povos indígenas: os charruas e os guaranis; e reconhece essa porcentagem de 2,4% como a porcentagem de população indígena de Uruguai.

E como foi, para você, esse processo de reconhecimento de identidade?

Tudo começa, para mim, com o tema das mulheres, porque por parte da minha mãe herdei esse sangue indígena charrua. E foi um processo muito duro porque minha mãe nunca havia me contado. Foi através de uma tia minha, quando eu tinha 18, anos que contou que meu bisavô era um charrua. Então, eu comecei um trabalho de investigação familiar, na memória oral familiar. E começo a me juntar e reencontrar com outros descendentes, porque nesse momento nós nos dizíamos descendentes.

Foi todo um processo, até que surgiram, em 1989, nossas primeiras organizações. Foi um processo lento, mas agora, desde a fundação do Conacha, nos reivindicamos e me reconheço como charrua. Esse foi um processo lento de recuperação de identidade. Da minha identidade silenciada, esquecida; para poder sobreviver frente a esse processo de espoliação territorial e espoliação de nossos corpos também, como mulheres indígenas. E de espoliação da nossa própria identidade, de não poder ter o direito de ter a identidade indígena. Esse é o caso da minha mãe, por exemplo, que entrou nesse processo junto comigo.

Por isso, eu acredito que é a partir das mulheres que surge toda a luta indígena do Uruguai. No Conacha, por exemplo, são as mulheres que lideram o conselho. E porque somos as que guardamos as memórias das famílias, como foi cruel o genocídio e o desmembramento dos nossos povos, todas essas instâncias. Nossas avós e bisavós foram ou são empregadas domésticas, ou empregadas em fazendas. E essas são histórias de exclusão, de espoliação e de pobreza que vivemos. São essas histórias que nos unificam e nos unem. E nos dão força para seguir lutando por nossa reconstituição como charruas que somos.

Estamos em um momento político, no Brasil, na América Latina e em todo o mundo, de avanço do conservadorismo. Isso, de alguma forma, tornou o trabalho de vocês mais difícil? Como vocês sentem esta guinada?

O Conacha se forma, justamente, em 2005 em um contexto propício de avanços de direitos humanos, no período de um primeiro governo de um ciclo progressista no Uruguai. O avanço de novos governos conservadores e de direita nos prejudica – não apenas às mulheres indígenas do meu país, mas de toda a região –, pois há um retrocesso e embates a respeito dos direitos indígenas. Especialmente, nós concebemos nossos territórios como nosso corpo e nossos espíritos. Quando tocam em nossos territórios, nos tocam a vida. Somos todas nós as mais afetadas por esses embates capitalistas, neocoloniais e patriarcais também.

Mesmo durante um governo progressista não houve esse reconhecimento dos povos indígenas no Uruguai. Qual a expectativa para as demandas indígenas e com relação aos direitos das mulheres sob esse novo governo de direita?

Ainda que não obtivemos o reconhecimento dos nossos territórios ancestrais e da nossa própria existência como povos indígenas, durante o governo progressista dos últimos anos houve passos importantes, como incluir as mulheres indígenas nas políticas públicas, mesmo que ainda não sejam políticas específicas para os povos indígenas – mas nos incluíram na participação política

O que tememos agora com o novo governo e Parlamento é o corte de muitos avanços nos direitos humanos, especialmente com relação aos direitos das mulheres. Este é nosso temor e nossa resistência. [A mobilização] do 8 de Março deste ano se dá nesse momento de mudança de governo e nessa encruzilhada, e lamentavelmente não temos esperanças que eles podem abandonar essas alterações que o governo propõe com tanta força, também apoiados por outros governos de direita de toda a região.

Neste contexto progressista no Uruguai, houve avanços muito importantes para as mulheres, como a legalização do aborto – o país tem a legislação mais avançada da região para o tema. Vocês temem retrocessos nessas conquistas? E quais as demandas para aprimorar essas leis?

O movimento feminista do Uruguai aderiu muito à mobilização para obter essas conquistas, como a lei do aborto, que deu uma garantia muito forte à liberdade das mulheres e à tomada de decisões próprias sobre seu próprio corpo. Neste novo ciclo, temos um grande temor que essas leis caiam e, por isso, estamos vigilantes com outras mulheres, neste 8 de Março. Vamos participar da marcha com as mulheres afrodescendentes, em uma resistência contra o racismo e a discriminação. Esses governos, em outros países, não apenas vão na direção oposta aos direitos das mulheres, mas há um retrocesso muito grande com relação à discriminação e ao racismo estrutural. Não apenas do próprio Estado, mas de um poder paralelo que se perfila em toda a América, uma militarização que é uma realidade cruel para as pessoas que pertencem às minorias.

Agora, no Brasil, estamos passando por um momento muito delicado com relação às questões indígenas, com desestruturação de políticas importantes para os territórios indígenas. E há também um avanço muito grande, por exemplo, da mineração nesses territórios. Quais são as pressões econômicas sob os territórios indígenas do Uruguai?

Não temos reconhecimento dos nossos territórios ancestrais, mas estamos em plena vigilância desses territórios, que são sagrados para nós. Estamos vigilantes desde a formação do Conacha e constatamos que, nesses territórios, são onde estão as grandes florestais [empresas que se dedicam à produção de eucalipto e pinus para a produção de celulose e madeira]. Essas empresas são um problema muito grande que temos porque elas deslocam as pessoas, muitas delas mulheres rurais, para as cidades porque essas fazendas quase não têm empregados, contam com trabalho mecanizado. E constatamos isso porque há muitas escolas rurais abandonadas e fechadas, e esse deslocamento forçado também implica uma desterritorialização da nossa cultura, um desmembramento do nosso povo. Um segundo genocídio.

E há também o tema dos agrotóxicos. Aqui no Uruguai há muitas plantações de soja transgênica, que são fumigadas. E, nestes locais, há muitas mulheres charruas que são fumigadas pelos agrotóxicos. E fizemos essa denúncia ao relatório especial sobre povos indígenas [das Nações Unidas] em várias oportunidades.

Faz um certo tempo, o Conacha está trabalhando para que, de alguma forma, elaboremos um mapa de nossos territórios ancestrais do Uruguai, para que se respeitem esses lugares. Estamos trabalhando com a Universidade da República para poder identificar todos esses lugares sagrados para nós e frear o avanço das empresas florestais. O pior embate agora é com a fábrica da UPM, empresa finlandesa, que segue envenenando nossas águas e nossos territórios.

No Brasil, o aumento do conservadorismo encontrou eco no aumento da presença das igrejas evangélicas. Isso também ocorre no Uruguai?

Realmente, também há um grande avanço, no Uruguai, das igrejas evangélicas. Eu, por exemplo, vivo num bairro mais afastado da zona oeste de Montevidéu, que é uma zona considerada mais marginal. E todos os dias é possível ver o avanço dessas igrejas evangélicas, que chegam trazendo uma voz muito conservadora e de retrocessos ao direito das mulheres. E isso é um grande perigo.

O novo presidente, em uma de suas primeiras ações que ele fez quando tomou posse do governo, foi assistir a uma missa, com todos os seus ministros e representantes de governo, da Igreja Católica, com representantes das igrejas judaica e evangélica. E isso, para mim, é um sinal de posicionamento de uma violação da laicidade uruguaia. Somos um país bastante laico, desde o princípio do século 20. E lamentavelmente isso representa um retrocesso. E estamos atentas porque há grande cooptação dos corpos e territórios por parte das igrejas evangélicas, que agora também fazem parte, de certa forma, do governo.

Para terminar, quais são as similaridades que você enxerga na luta das mulheres latino-americanas, neste período, principalmente com relação à luta por direitos e às questões territoriais?

As mulheres da América Latina têm um embate e um retrocesso terrível sob governos de direita, que recrudescem situações dos povos indígenas e afrodescendentes. A situação das mulheres excluídas recrudesce.

Esses governos de direita são muito mais invasivos, cruéis e violentos em relação a abrir as portas às empresas transnacionais e os próprios estados, que invadem com todo o aparato e estrutura territórios ancestrais.

Então, eu acredito que é isto que nos une: a defesa dos nossos corpos, territórios e espírito; porque também somos espírito e nosso território representa a vida. Não existe, para nós, a vida sem território. E por isso que nossa luta no Uruguai é muito difícil, mas não impossível.  Dependemos do seu apoio para produzir mais reportagens de impacto. Todo dinheiro que a Pública recebe é investido em investigações sobre abusos de poder e violações de direitos. E todo nosso material é aberto ao público. Apoie a Pública.

Por: Rute Pina/Agência Pública