NORTE

*Vera Lúcia de Mendonça Silva / Anna Lorena Morais Silva

.1. Visibilidade dos excluídos sociodigitais no país Em um país
cuja desigualdade social tem aumentado nos últimos 4 anos, a pandemia do Covid-19 há dado mais visibilidade às condições de vida da população. A falta de infraestrutura nos bairros, o desemprego e as perversas situações de trabalho e de salário saíram à luz. Em meio a esse cenário, a exclusão digital emergiu do encobrimento. Em circunstâncias em que o mundo se tornou mais virtual, as relações se (re) estabeleceram em rede e muitas ocupações se tornaram dependentes da tecnologia, foi possível identificar que as novas estratégias de relacionamento e trabalho não incorporaram a totalidade dos indivíduos.

Assim sendo, uma parte significativa da população brasileira1 se torna visível devido à falta de acesso ou ingresso precário aos distintos recursos do mundo digital (computador, celular, conexão e informação) e, consequentemente, a ausência das relações favorecidas pela tecnologia nos âmbitos afetivo, educativo e laboral. Para compreender esse processo, tomaremos alguns dados das pesquisas TIC domicílios e TIC educação, realizadas pelo Centro Regional para o Desenvolvimento de Estudos sobre a Sociedade da Informação (Cetic.br/CGI.br)2.

Cerca de 47 milhões de brasileiros estão fora da rede, o que representa 26% da população3. Certamente, essa falta de acesso se deve as condições de vida da população e afeta sobretudo as classes baixas. A pesquisa adverte que 26 milhões de pessoas das classes `DE´ estão fora do mundo virtual, o que representa 43% dessa camada social. Distinguindo o acesso nas zonas urbana e rural, identificou- -se que no setor urbano 23% dos indivíduos estão desconectados, o que significa 35 milhões de brasileiros fora da rede. Na zona rural, 47% da população está fora do mundo virtual, representando 12 milhões de indivíduos sem acesso a rede (Cetic.br).

Por nível de renda, foi identificado que apenas 6% dos que ganham acima de 10 salários mínimo não estão conectados, ascendendo o percentual a 14% com uma renda entre 3 e 5 salários. Porém, a falta de acesso à internet chega a 49% dos que tem uma renda de menos de um salário, um indicador da situação de exclusão digital no país, que resulta da extrema desigualdade socioeconômica existente. Apenas 5% das residências da classe ´A´ não tem computador, enquanto a carência na classe ´C´ ascende a 56%. Nas classes ´DE´ a lacuna alcança a 86% das residências4.

O celular é o principal instrumento de acesso à internet, tanto no campo, como na cidade, independente da classe social, alcançando em torno de 99% das pessoas, sendo que 58% tem no aparelho a única forma de acesso à rede. No campo, o acesso a internet é por via móvel, alcançando cerca de 79% dos que tem celular.

Por classe e etnia, a pesquisa indica que 85% da população das classes ´DE´ acessa internet apenas por celular enquanto apenas 11% da classe ´A´ recorre a esse tipo de uso. Entre as populações indígena, negra, pálida, amarela e branca também existe uma significativa diferença no acesso exclusivo por celular, com 75%, 65%, 61%, 52% e 51%5, respectivamente. Isto é, a conexão móvel é predominante nas classes baixas, incluindo as denominadas minorias sociais. Considerando que os serviços oferecidos por celular são mais caros, sofrem mais restrições no tráfego de dados e no uso como ferramenta de trabalho e de estudo, entre outros, as pessoas que o utilizam de forma exclusiva são prejudicadas no acesso, uso e manipulação da informação.

Os dados citados até aqui reforçam a necessidade de não abandonar as perspectivas de classe e etnia na análise de conjuntura da sociedade brasileira afetada pelo descaso do governo com as condições de vida, saúde, educação e trabalho da população em plena pandemia do Covid-19. A intenção aqui é nortear esse debate a partir do tema da educação em circunstâncias de isolamento social.

  1. Educação e exclusão social e digital
    Com a pandemia do Covid-19, o confinamento social incrementou a relação virtual nos âmbitos afetivo, educativo, de trabalho, lazer e consumo. Nos países de desigualdade extrema, como o Brasil, a exclusão digital comprometeu ainda mais a manutenção dessas relações em todas as gerações, impossibilitando a realização plena de atividades das pessoas que pertencem as classes ´C´ e ´DE´, inclusive as essenciais, chamando a atenção para sua exclusão ainda maior na sociedade digital.

Uma situação especial a ser aferida diz respeito à escolarização das crianças e jovens. No mundo, o cotidiano escolar desses dois grupos foi afetado com a pandemia, e em poucos lugares houve aplicação de políticas públicas para minimizar os prejuízos causados no processo ensino-aprendizagem nas distintas fases de estudos. De maneira especial veio à tona a abissal diferença de formação entre os sistemas de ensino privado e público, assim como o trato nos diferentes países e, nestes, nos estados e municípios.

No Brasil, como em muitos países, os colégios privados adotaram as plataformas digitais para o ensino emergencial à distância segundo as categorias econômicas existentes no setor. Destarte, houve patrocínio dos estudos para que o conteúdo das disciplinas fosse garantido aos estudantes, conforme grau escolar e com perda mínima. Isso não ocorreu no setor público de ensino de forma tão imediata. Os governos dos estados e do Distrito Federal demoraram a tomar medidas efetivas que garantissem o ensino remoto aos estudantes, mesmo que de modo não abrangente, principalmente aos das classes baixas. Passados seis meses do fechamento das escolas, muitos são os problemas enfrentados a fim Página: 9 PoliTeknik United de se garantir a educação a distância aos estudantes das escolas públicas, especialmente aos de periferia e/ou áreas rurais. Pois a realidade econômica das famílias dessas crianças e jovens é bastante instável, tendo em vista que muitas pessoas perderam o emprego durante a pandemia. Logo, muitos não possuem condições de manter pacotes e planos de dados móveis ou até mesmo contratar um pacote de internet banda larga. Além disso, a realidade amarga também quanto a falta do aparelho celular, para não falar do computador ou tablet. Muitas famílias geralmente possuem apenas um único celular em casa, que geralmente pertence a mãe ou pai ou responsável do estudante e que muitas vezes utilizam o aparelho como ferramenta de comunicação de trabalho, deixando assim o aluno impossibilitado de acompanhar com dedicação as atividades oferecidas pelas plataformas de ensino virtuais, a exemplo do Google Sala de Aula, que é utilizada em muitos lugares do país, como o Distrito Federal, por exemplo.

Devido a também omissão do Ministério da Educação, as novas demandas das escolas públicas se somaram as já existentes, comprometendo ainda mais os estudos dos estudantes das classes mais baixas e o calendário escolar anual. Utilizar as antigas e novas tecnologias para favorecer o acesso aos processos do conhecimento a todos os alunos, e com participação efetiva dos professores e funcionários se tornou um desafio. Esse é um quebra-cabeça de grandes proporções que ainda não foi solucionado no país e que põe em risco a grande maioria da população em idade escolar, ponderando que a rede pública de ensino respondeu em 2019 pela matrícula de 74,7% dos alunos da creche e pré-escola, 82% dos estudantes do ensino fundamental e 87,4% do nível médio de ensino (PNAD, 2019)6. A ausência do Estado tornou inviável o pleno funcionamento do sistema, colaborando a que milhões de crianças e adolescentes não pudessem acompanhar as atividades escolares de casa por não terem acesso à internet ou terem acesso precário para assistir videoconferências, carregar e baixar material, como vídeo aulas e formulários, ou participar de grupos de debates7. Em muitas capitais foram oferecidas aulas gravadas e programas educativos pela TV e rádio, atividades que funcionam como os programas já oferecidos pelos mesmos meios, o que efetivamente impôs as crianças e jovens trocar o status de estudante em uma escola pelo de telespectador passivo em casa. Como público, o estudante apenas assiste ou ouve o que foi produzido, sem poder expressar dúvidas, questionamentos e dificuldades de aprendizagem. Enfim, como mero telespectador não pode interagir com os professores e os colegas.

Até o presente os estudantes não logram ter acesso satisfatório ao conteúdo do ano escolar no sistema público de ensino. Isto é reflexo, da falta de investimento em infraestrutura nas escolas e suporte tecnológico aos estudantes, professores e funcionários nos lugares de moradia. Em um novo contexto de aulas remotas, aos professores lhes foi determinado atribuir atividades aos estudantes e a estes estudar sozinhos, sem orientação plena, essencial no processo de ensino-aprendizagem em todas as fases, respeitando assim as particularidades de cada estudante. As aulas se tornaram de difícil entendimento e mais cansativas, estando o aluno sozinho, passivo e sem a ajuda do professor e amparo dos colegas. Soma-se ainda a todos esses entraves uma questão que assola muitas famílias: a falta de escolaridade de muitos pais, mães e responsáveis desses estudantes, principalmente os de lares mais humildes. Esse fato compromete ainda mais o ensino das crianças que pertencem ao ensino infantil e fundamental por precisarem de um amparo maior no desenvolvimento e compreensão das atividades, leituras e tarefas.

Em meio a essas condições que foram infligidas aos estudantes se nota a falta de apreço pela educação, pelas crianças, pelos jovens e pelos professores (inclusive as forças sindicais), todos essencialmente desmotivados e sem nenhum poder efetivo para mudar a situação. Até os estudantes considerados mais dedicados e estudiosos estão desestimulados. E nesse cenário deve ser incluído também os 6,4 milhões de alunos com atraso escolar de dois ou mais anos (Unicef ). Além do mais, existe o grupo de estudantes que trabalha, cujos problemas com cansaço e horário prejudicam o acompanhamento das novas teias de estudos. E claro, não podemos esquecer dos tantos estudantes que apresentam dificuldades por serem diagnosticados com síndromes, doenças e limitações que comprometem a capacidade de aprendizagem, e que por isso precisam de um acompanhamento escolar mais acolhedor com amparo de psicólogos, pedagogos e do serviço de orientação educacional (SOE).

As novas estruturas de estudos impostas ao processo ensino-aprendizagem, com uso primordial da internet, têm dado visibilidade aos desconectados virtuais e a situação de extrema exclusão socioeconômica dos estudantes das classes baixas. São crianças e jovens prejudicados nos processos de acesso ao conhecimento por estarem marginalizados na sociedade, sendo a exclusão virtual uma consequência da situação de classe. E mais que nunca se revela os problemas relacionados ao reconhecimento do direito de acesso aos estudos por parte de quem deveria conceder-lhes, conforme a lei, o Estado. A ausência de garantias do cumprimento da lei compromete a possibilidade de prosseguimento dos estudos e o ingresso à universidade por parte desses estudantes carentes, o que ameaça as histórias de vida de tantas crianças e jovens.

 

  1. Em 2019, a renda média do 1% mais rico (2,1 milhões de pessoas), foi 33,7 vezes maior do que a renda dos 50% mais pobres da população (104, 7 milhões de pessoas). A diferença era de 30,5 vezes em 2016. (PNAD/Contínua- -IBGE). https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/ populacao/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de- -domicilios-continua-mensal.html?=&t=destaques https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/ 2020-05/rendimento-do-1-mais-rico-e-337-vezes- -o-que-recebe-metade-dos-pobres
  2. Disponível em https://cetic.br/pt/pesquisa/domicilios/
  3. Veja a pesquisa TIC domicílios, 2019-2020/Cetic.br. dados coletados entre 10/2019 e 03/2020. Também em https://canaltech.com.br/internet/quase-75-dos-brasileiros-ja-usam-a-internet-no-seu-dia-a-dia-aponta-pesquisa-165500/
  4. TIC domicílios, 2019, Cetic.br. Veja também https://agenciabrasil.ebc.com.br/es/economia/noticia/2020-04/uno-de-cada-cuatro-brasilenos-no-tiene-acceso-internet. Eainda https://canaltech.com.br/internet/quase-75-dos-brasileiros-ja-usam-a-internet-
    -no-seu-dia-a-dia-aponta-pesquisa-165500/
  5. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
    Contínua (Pnad), ano 2019.
  6. São cerca de 4,8 milhões de crianças e adolescentes sem internet.(UNICEF-Cetic.br/NIC) https://www.unicef.
    org/brazil/comunicados-de-imprensa/e-urgente-ir-atras-de-cada-crianca-e-adolescente-que-nao-conseguiu-se-manter-aprendendo-na-pandemia.

 

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Vera Lúcia de Mendonça Silva *                                                                                                                                                                                                                                     Professora Pleno do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Santa Cruz –UESC. Coordenadora e pesquisadora do Núcleo de estudos Sociedade, Educaçao e Políticas Públicas-NESEP.
Anna Lorena Morais Silva*                                                                                                                                                                                                                                             Historiadora. Pós-graduada lato sensu em História, Cidadania e Justiça Social pelo UniCEUB. Mestranda em História pela Uiversidade de Brasilia (UNB)

Fonte: Politeknik Portugues

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