Líder indígena Álvaro Tukano foi um dos apresentadores do histórico ‘Programa de Índio’

Produção radiofônica feita por indígenas foi ao ar entre 1985 e 1991 na Rádio USP. Episódios estão disponíveis online

Primeiro programa radiofônico feito por povos indígenas no Brasil, segundo a Funai (Fundação Nacional do Índio), o “Programa de Índio” teve seu acervo recuperado e está disponível online.
O programa foi realizado entre 1985 e 1991 pela ONG Núcleo de Cultura Indígena. Semanal e com duração de 30 minutos, o “Programa de Índio” era transmitido pela Rádio USP e apresentado por Ailton Krenak, Álvaro Tukano e outras lideranças.
“O programa trazia o som das aldeias, a música ritual, as cerimônias, além das informações sobre o cotidiano e as expectativas dos povos indígenas”, descreve uma notícia publicada em 2009 pelo site da Funai.  O piloto foi gravado em junho de 1985, indo ao ar logo em seguida. Foi o primeiro de 220 programas, transmitidos ao longo de 4 anos e 9 meses. A partir de 1987, começou a ser distribuído para outras emissoras, como a Rádio Universidade Federal de Santa Maria. Por falta de estrutura e recursos, muitos dos programas – que eram gravados e editados em fitas de rolo de 1.200 pés – foram apagados antes de serem copiados em fitas cassete.
A iniciativa pioneira “abriu espaços através do rádio para o pensamento, história, luta e cultura dos povos indígenas brasileiros”, diz uma menção ao programa no site da Rádio Yandê, primeira rádio indígena online brasileira.
‘Um Programa de Índio para amansar branco’
A proposta dos produtores do programa era estabelecer uma comunicação com os não indígenas, levando informações para a população urbana.
“Como dizia Ailton Krenak, se apropriando de um termo usado pelos indigenistas, era um programa para ‘amansar o branco’, civilizar essa gente distante, com um pensamento tão diferente dos povos indígenas, tornando-os mais humanos, numa relação de encontro verdadeiro, de trocas e de conhecimento mútuo”, escreve a jornalista Angela Pappiani no artigo “Programa de Índio: criando uma ponte sonora entre as culturas”, publicado pela Novos Olhares, revista de Comunicação da USP.
O “Programa de Índio” chegava pela Rádio Caiová, em Dourados, no Mato Grosso do Sul, cidade encravada dentro de uma área indígena do povo Kaiowá, marcada por conflitos pela posse da terra.
As informações transmitidas pelo programa mobilizaram os Kaiowá, que eram ouvintes assíduos e participantes ativos do programa, enviando fitas gravadas e informações. A população não indígena também se manifestava, admitindo em cartas a ignorância sobre a cultura indígena e a compreensão sobre a necessidade de proteção dos direitos dessa população.
O artigo de Angela Pappiani também menciona alguns recursos usados pelo programa para medir e incentivar a participação dos ouvintes, como o sorteio de discos e livros e a votação para o “Prêmio John Wayne”, que elegia o inimigo número um do povo indígena e teve várias edições e centenas de votantes.
O momento político
O ano de estreia do “Programa de Índio” na Rádio USP coincide com a redemocratização no país e com a eleição de Tancredo Neves em janeiro de 1985. Nos anos seguintes, povos indígenas participaram ativamente da Constituinte que resultou na Constituição de 1988.
A relação da ditadura militar com os povos indígenas foi marcada por operações malogradas, violência e uma visão de que a Amazônia precisava ser ocupada e desenvolvida, como se não houvesse ninguém na região.
Ao final da década de 1970, “jovens lideranças indígenas, com domínio do português e compreensão dos mecanismos de dominação do Estado brasileiro, passam a atuar junto a suas comunidades, defendendo os direitos de seu povo e buscando interlocutores junto à sociedade civil para fazerem frente às políticas e planos governamentais”, descreve Angela Pappiani em seu artigo sobre o “Programa de Índio”.
O restante da sociedade civil que também se organizava contra a ditadura tornou-se aliada dos povos indígenas, fazendo surgir associações de defesa dos povos indígenas em vários estados nesse momento.
Em 1979, surgiu a União das Nações Indígenas, organização nacional que buscou unificar suas reivindicações, adotando uma política de alianças com os movimentos de apoio à causa indígena espalhados pelo Brasil.
Segundo Pappiani, foi a partir dessa organização que os povos indígenas organizados puderam se apropriar, pela primeira vez, dos meios de comunicação de massa.
A UNI passou a editar um jornal impresso na cidade de São Paulo, chamado Jornal Indígena, em língua portuguesa, para se comunicar com as aldeias, também com a sociedade civil e os veículos de comunicação.
O custo da edição e impressão, a dificuldade na distribuição e a limitação da linguagem escrita, porém, limitavam o alcance do jornal. Foi nesse contexto que o rádio despontou como resposta mais adequada às necessidades do movimento indígena naquele momento.

Fonte: NEXO