ÁREA ONDE VIVE UM GRUPO INDÍGENA ISOLADO, NO ACRE

A Funai (Fundação Nacional do Índio) confirmou, na quarta-feira (5) a nomeação do antropólogo Ricardo Lopes Dias como coordenador da seção responsável por proteger os chamados indígenas isolados, que têm pouco ou nenhum contato com outros grupos.

Antes mesmo de a nomeação ser publicada em Diário Oficial, entidades e lideranças indígenas vinham criticando o nome de Lopes Dias pelo antropólogo ter atuado como missionário no passado.

O novo coordenador foi ligado, nos anos 1990, à Missão Novas Tribos do Brasil, conhecida por promover a evangelização de indígenas. Atuou no Vale do Javari, no interior do Amazonas, região onde há diversos registros de indígenas isolados. Ao deixar a Amazônia, foi professor em universidades vinculadas a entidades evangélicas.

“[temos] a missão de viver integralmente para alcançar os povos perdidos. Até que a última tribo, a última família, o último homem tenha ouvido sobre a maravilhosa salvação do Senhor Jesus Cristo”

Missão Novas Tribos do Brasil

organização missionária da qual Ricardo Lopes Dias participou nos anos 1990, em declaração registrada em seu site

A missão da qual o antropólogo participou foi questionada por sua atuação na Amazônia. A organização foi retirada de uma área habitada por indígenas no Pará, na década de 1990, e investigada pela suposta responsabilidade na morte de habitantes da região que teriam ficado doentes após o contato com missionários. O caso foi arquivado.

A chegada de Lopes Dias à Funai foi possível porque, em janeiro, o presidente do órgão, Marcelo Xavier, mudou os critérios exigidos para o cargo. Antes, o posto só podia ser exercido por servidores públicos efetivos (ou seja, aprovados em concurso). Agora, ele pode ser ocupado por pessoas de fora da administração pública.

A mudança na Funai foi criticada por organizações ligadas à defesa dos povos indígenas, que consideraram que a nova regra abre brecha para indicações políticas em um dos postos mais importantes do órgão. Ao jornal O Globo, críticos disseram que a mudança coloca os isolados em perigo.

“Minha atuação vai ser técnica”, disse Dias ao jornal O Globo na sexta-feira (31), antes de sua nomeação sair no Diário Oficial. “Não vou promover a evangelização de índios.” Ele lembrou que é antropólogo, disse que sabe da situação dos indígenas no país e que está sendo discriminado por ser evangélico.

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INDÍGENAS ISOLADOS REAGEM A AVIÃO QUE PASSA POR CIMA DE SUA TERRA, NO ACRE
As populações que vivem hoje em isolamento são sobreviventes não só dos tempos coloniais, mas de ataques mais recentes aos povos indígenas. Ao longo do século 20, especialmente durante a ditadura militar (1964-1985), o Estado realizou expedições de contato forçado de povos que viviam em terras que o governo desejava ocupar. Muitos foram mortos e vítimas de epidemias.

A etnia Nambikwara, que fica entre o Mato Grosso e Rondônia, tinha cerca de 10 mil indivíduos no século 20, por exemplo. Após o contato, 9.000 morreram de sarampo, gripe, coqueluche e gonorreia, doenças para as quais o grupo não tinha anticorpos. Houve também episódios de mortes causadas por massacres.

As informações sobre o período são contadas nos livros “Os fuzis e as flechas”, do jornalista Rubens Valente, que investigou a relação entre a ditadura e os povos indígenas, e “Cercos e resistências: povos indígenas isolados na Amazônia brasileira”, do médico sanitarista Douglas Rodrigues, que fez a publicação pelo Instituto Socioambiental.

Rodrigues questiona, no livro, a natureza voluntária atribuída aos indígenas no contexto brasileiro, afinal, muitas comunidades decidiram se afastar como estratégia de sobrevivência. “O caráter voluntário do isolamento tem pouco de espontâneo”, ele diz.

Onde ficam, e quantos são os isolados
Atualmente, há registros de pouco mais de 100 povos indígenas isolados no Brasil, todos na região da Amazônia Legal (que abrange os estados do Norte mais partes de Maranhão e Mato Grosso). A Funai diz, em seu site, que foram registrados 114 povos, enquanto o Instituto Socioambiental conta que, em 2019, eram 128 populações do tipo.

A Amazônia brasileira é a região do planeta com maior número de comunidades indígenas classificadas como isoladas. As origens, costumes e práticas dos grupos são diversas — alguns são caçadores nômades, enquanto outros são sedentários, cultivando plantações. A maior parte está instalada em áreas dentro de terras demarcadas.

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A contagem de povos isolados não é simples, e os registros no Brasil podem mudar. De 128 registros, 29 haviam sido confirmados até 2019, segundo o Instituto Socioambiental. Os demais representam povos em estudo (que não foram confirmados, mas sobre os quais há fortes evidências) e “informações” (categoria que indica registros, mas poucos estudos sobre a presença de um povo no local onde aparenta estar).

Alguns dos grupos confirmados hoje são Korubo (Amazonas), Pirititi (Roraima) e Moxihatëtëma (também em Roraima, na terra indígena Ianomâmi, a maior do país). Para confirmar a existência de um deles, a Funai afirma que faz uma série de trabalhos de localização geográfica, ao ponto de não apenas comprovar a presença do grupo, mas conseguir informações sobre seu território e características culturais.

Um estudo apresentado em 2019 no Fórum Permanente da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre Questões Indígenas mostrou que não só no Brasil, mas na América do Sul (Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Venezuela), o número de indígenas isolados aumentou 120% em 15 anos, e a maioria corre risco de desaparecer. Algumas ameaças comuns a eles são a expansão de obras na floresta, o avanço do agronegócio e a grilagem de terras.

Qual sua relação com o Estado brasileiro
A Funai tem como funções monitorar os povos indígenas, proteger aqueles que estão vulneráveis, demarcar novas terras, trabalhar pela conservação e recuperação ambiental dos locais demarcados e garantir seguridade e educação a esses povos, entre outras atribuições.

INDÍGENAS ANTES ISOLADOS FAZEM CONTATO VOLUNTÁRIO COM PESQUISADORES DA FUNAI (NÃO VISTOS), NO ACRE

FOTO: FUNAI/VIA REUTERS

INDÍGENAS ANTES ISOLADOS FAZEM CONTATO VOLUNTÁRIO COM PESQUISADORES DA FUNAI (NÃO VISTOS), NO ACRE
Ao tratar dos povos isolados, o órgão adota uma política de proteção, mas de não contato — ou seja, a Funai monitora os territórios onde vivem esses grupos, mas não tem obrigação de contatá-los. A política surgiu para respeitar o modo de vida dos isolados, que têm direito de decidir como desejam viver.

As atividades da Funai com esses grupos são realizadas pela Coordenação-Geral de Índios Isolados e Recém-Contatados, seção para a qual Ricardo Lopes Dias foi nomeado. A coordenação trabalha ao lado das chamadas Frentes de Proteção Etnoambiental, unidades da Funai especializadas em atender aos povos isolados nos estados.

Quais os deveres da Funai
garantir aos indígenas isolados sua plena liberdade
realizar ações de campo para localizá-los no mapa
zelar para que os grupos não sejam contatados
proteger e regularizar as terras habitadas por esses grupos
exercer poder de polícia, proibindo invasões a essas terras
proibir atividades econômicas e comerciais nessas áreas
proteger a saúde e a cultura dos povos isolados.
Até a década de 1980, as políticas públicas voltadas às populações indígenas eram baseadas na premissa de que, em algum momento, eles iriam superar sua “condição” de indígenas”, integrando-se aos costumes da sociedade nacional (não indígena) As ações do Estado incluíam processos forçados de atração, contato e sedentarização.

A situação mudou na Funai em 1987, e no país em 1988, quando a Constituição Federal reconheceu a organização social, os hábitos, costumes, tradições e diferenças culturais dos povos indígenas, assegurando a eles o direito de manter sua cultura, identidade e modo de vida. A função do Estado não era mais integrá-los, mas protegê-los.

SHUBUA, CASA DE ORAÇÕES, EM ALDEIA DA ETNIA HUNI KUI, NO ACRE, EM ÁREA PRÓXIMA DE ONDE VIVEM POVOS ISOLADOS.

Apesar de ter instituído com sucesso a política de não contato, a Funai ainda tem um marco jurídico frágil para proteger os povos isolados. Isso porque as regras da área são definidas por portarias, que são textos administrativos internos que não têm força de lei. Segundo indigenistas, a qualquer momento, a política pode ser alterada pelos próprios gestores da Funai ou ministros que chefiam a pasta à qual o órgão está vinculado, que hoje é o Ministério da Justiça.

Antes da nomeação de Lopes Dias, em dezembro de 2019, a Funai mudou sua política com os isolados, restringindo o trabalho de servidores apenas a terras homologadas ou regularizadas (ou seja, que estão em estágios avançados de demarcação). A mudança deixou 10 áreas com povos isolados desprotegidas, segundo o jornal O Globo.

Qual o estado da Funai no governo Bolsonaro
Após a posse do presidente Jair Bolsonaro, em janeiro de 2019, a Funai passou por uma série de mudanças que suspenderam ou paralisaram algumas de suas principais atividades. A principal delas foi a demarcação de terras, que o Executivo tentou passar para o Ministério da Agricultura, num vaivém de decisões sem sucesso.
ATRIBUIÇÃO PASSA À AGRICULTURA

Ao assumir, em 1º de Janeiro de 2019, Bolsonaro publicou a medida provisória 879, que reorganizava os órgãos do Executivo. A demarcação e o registro de terras indígenas, segundo o texto, seria transferida para o Ministério da Agricultura, composto por representantes historicamente contrários à política indigenista. A Funai também deixou o Ministério da Justiça e foi para a pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos, de Damares Alves.

CONGRESSO REJEITA ALTERAÇÃO

O Congresso Nacional rejeitou, em maio de 2019, a demarcação de terras indígenas sob comando da Agricultura. Ela retornou à Funai. Além disso, o órgão indigenista voltou à pasta da Justiça. Isso ocorreu porque medidas provisórias devem sempre passar pelo Congresso (em até 120 dias), embora tenham força de lei quando são assinadas.

BOLSONARO INSISTE, E SUPREMO REJEITA

Após rejeição do Congresso, Bolsonaro assinou um novo documento, a medida provisória 886, em junho de 2019. O texto devolvia a responsabilidade sobre a demarcação de terras indígenas para a pasta da Agricultura. Dois meses depois, o Supremo Tribunal Federal suspendeu a medida. Eles se basearam no fato de que a Constituição impede que o presidente reedite uma medida provisória que já tenha sido rejeitada.

A Funai também passa por cortes orçamentários e mudanças de regimento que, segundo servidores, inviabiliza atividades do órgão. As críticas recaem, ainda, sobre contratações recentes da entidade, como a do presidente Marcelo Xavier, que não tem afinidade com a política indigenista. Delegado federal, ele é próximo a deputados ruralistas.

Antes mesmo da eleição, Bolsonaro declarava que indígenas viviam “em zoológicos”, que deveriam ser “iguais” aos não indígenas e que, se fosse presidente, ele interromperia a demarcação de terras. A convicção se manteve no governo. Bolsonaro não demarcou novas terras, tenta flexibilizar a proteção de áreas indígenas para permitir atividades como a mineração, e continua a manifestar interesse de que os povos originais sejam “integrados” ao restante da sociedade brasileira.

Ao Nexo, em janeiro de 2020, o antropólogo Márcio Santilli, fundador do Instituto Socioambiental, disse que o discurso do presidente ecoa um objetivo de assimilação dos povos indígenas que foi comum no Brasil no passado, quando o Estado fez uso de ações repressivas para tentar eliminar os costumes desses grupos e trazê-los para a sociedade não indígena.

“Quando Bolsonaro diz que os índios devem se tornar iguais a nós, a pergunta que emerge é: igual a quem? A ele, aos ruralistas, aos favelados das grandes cidades? Que igual é esse?”, questionou Santilli. “Isso tudo é uma questão de visão ideológica, enquanto na realidade concreta sequer subsiste esse conceito genérico de índios, já que falamos de uma pluralidade de povos”, completou.
Fonte: Jornal Nexo