“A saúde indígena hoje é uma situação primária”. Entrevista especial com o Pajé Celso Xukuru Kariri
Acadêmica em Enfermagem, Kamilla Fernandes, simpatizante e pesquisadora sobre a temática saúde indígena, pela Sociedade de Ensino Universitário do Nordeste (SEUNE), entrevistou Celso Celestino da Silva, (Celso Pajé) da aldeia Fazenda Canto do povo Xukuru-Kariri, no município de Palmeira dos Índios, em Alagoas, que estar presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) Alagoas/Sergipe, e membro do Conselho da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco.
Na entrevista a jovem liderança indígena, o Pajé Celso, a fez um relato sobre a saúde dos povos indígenas dos estados de Alagoas e Sergipe, e os efeitos causados pela pandemia da Covid-19, nas aldeias. Confira na íntegra a entrevista com o pajé Celso.
Kamilla Fernandes: O senhor poderia falar um pouco sobre como tem sido a sua rotina e a rotina dos indígenas nessa pandemia?
Pajé Celso: Primeiramente, quero agradecer por você estar participando comigo dessa entrevista e de ter nos escolhido para discutir um pouco sobre a questão de saúde e, principalmente, nesse período de pandemia que aconteceu nesse Brasil todo. Foi difícil para nós, mas tivemos uma preocupação grande com essa situação. Isso a nível Estado, enquanto eu estou presidente do CONDISI do Estado de Alagoas e de Sergipe.
É uma responsabilidade grande, porque são várias etnias. São 12 povos no Estado de Alagoas, 13 de Sergipe e temos uma população grande, de 23 mil a 25 mil indígenas. Hoje nós temos dentro das nossas comunidades as equipes multidisciplinares de saúde que atendem aos povos indígenas. Então, essa equipe é ligada à Secretaria Especial Indígena, e é contratada pelo IMIP. Então, em todas as comunidades nós temos equipes de saúde acompanhadas do agente de saneamento ao médico.
Essas equipes tiveram que se dobrar nesse período de pandemia, correr muito e nós, enquanto liderança, também tivemos a preocupação sobre a situação dessa pandemia, para que aqui em Alagoas nós não perdêssemos pessoas através dessa doença e, graças a Deus, tivemos um trabalho forte junto com essas equipes e os conselhos de saúde indígenas. Também tivemos o apoio de algumas organizações indígenas, como a APOIME, o apoio da FUNAI e o apoio, também, da SESAI, porque é ela a responsável por cuidar dessa situação.
No município também tivemos algumas parcerias e tivemos também o apoio do Ministério Público, porque o Ministério Público tem que fazer parte por ser um órgão fiscalizador de todas as ações. Foi difícil. Conseguimos fazer as barreiras sanitárias dentro das comunidades, orientações educativas dentro das comunidades, conversar, passar nas casas, orientando junto com a equipe, junto com os próprios conselheiros e a liderança. E conseguimos combater um pouco o uso de máscaras, de álcool gel, fizemos o nosso papel, além da questão da nossa religião que também teve que se envolver diante disso.
Nós também acreditamos nas nossas religiões, nas nossas medicinas tradicionais, das nossas comunidades, que nos ajudou muito a combater essa doença, até enquanto chegasse a vacina, que foi determinado para todos os povos indígenas do Brasil. Então chegou a vacina e todos no Estado de Alagoas, praticamente todos estão vacinados com a segunda dose. Isso foi uma luta, uma correria, uma parceria… Correr atrás para que chegássemos a ter esse momento. Tivemos uma luta forte com o Governo pra que liberasse essa situação. Então, a partir desse momento, o Ministro Barroso determinou uma MP para que se tivesse um atendimento mais rápido para os povos indígenas do Brasil, para que se tivesse vacina o mais rápido possível, chegasse às comunidades indígenas e tivesse o atendimento. Então, chegamos a correr para que não acontecesse algum óbito dentro da comunidade.
Kamilla Fernandes: Então, Pajé, como o senhor falou, é obrigação do Estado cuidar e manter os direitos dos povos indígenas. Eles forneceram esse suporte durante todo o processo nesse ano de pandemia fornecendo insumos, máscaras, álcool em gel, educação quanto às medidas de proteção? No geral, insumos o suficiente durante esse período?
Pajé Celso: Então, tivemos bastante complicação em termo dessas situações. Formamos um comitê junto com Ministério Público, SESAI, Controle Social, FUNAI, Secretarias Municipais, Secretarias do Estado, o COSEN, para que eles também fizessem parte, porque era uma preocupação nossa em termo disso. Então, corremos pra cima dessas situações para que se tivesse esse material. Logo no começo tivemos essa situação de máscara, álcool gel, quando a gente começou na situação mais forte dentro das comunidades indígenas. Então, tivemos essa preocupação. Mas, cada um tendo a sua responsabilidade. A saúde indígena hoje é uma situação primária, atendimento primário.
As equipes previnem para que não aconteça a doença, não aconteça o problema dentro das comunidades indígenas, para que o indígena não ocupe vários espaços dentro do Município ou do Estado, para que tenhamos o atendimento dentro da área, e o que é que acontece… A maioria dos municípios também não faz a sua parte, então temos que a média e alta complexidade é responsabilidade do Estado. A média é responsabilidade do município e a alta é do Estado. Isso tá dentro das Leis de cada um que assume suas responsabilidades. Nós percebemos que vários municípios e, principalmente, o estado não assumem o seu papel, jogando toda a sua responsabilidade apenas para a SESAI, que não é a única responsável sobre isso.
O Município e o Estado também tem essa responsabilidade. Tivemos que correr muito em termos disso e, principalmente, procurar a autoridade maior, que é o Ministério Público, para que houvesse um atendimento mais forte dentro das comunidades indígenas. Não vou dizer a você que o Município, que o Estado, aqui na minha comunidade Xucuru-Kariri fez 100%, mas também não vou dizer que não fizeram nada. Fizeram as suas atuações. Poucas, mas fizeram. Mas a preocupação maior foi nossa enquanto comunidade, enquanto liderança, do próprio conselho, enquanto controle social, dee fazer a nossa parte dentro das comunidades indígenas. E as equipes locais de saúde indígena fizeram todo um trabalho em termos disso.
Foi dessa maneira que aconteceu dentro das comunidades indígenas que a gente conhece e sabe do Estado. A correria foi grande no momento de existirem indígenas que estavam passando por dificuldade. Nós tínhamos que transferir para as UPA’s, para os hospitais, chegamos a ter indígenas internados. Parece que no Estado todo tivemos um óbito a dois. Teve um óbito que até hoje não foi confirmado se realmente foi COVID ou não. E outros saíram com um problema de casa e quando voltaram, infelizmente, voltaram mortos, mas com as condições de dizer que isso foi COVID. Graças a Deus aqui no Estado de alagoas não tivemos tantas mortes, tivemos vários infectados. Infectados nós tivemos muitos indígenas, mas tentamos combater isso.

Cacique da tribo Xukuru-Kariri de Palmeira dos Índios é o primeiro indígena vacinado em Alagoas. Foto:Divulgação
Kamilla Fernandes: Pajé, quais os maiores impactos que a pandemia exerceu sobre as aldeias na questão social, econômica, e na saúde?
Pajé Celso: Pois é, os impactos que ela causou foram na parte econômica, de trabalho, e de várias situações dentro das comunidades, porque nós temos indígenas que não trabalham apenas na comunidade, trabalham fora. Então, aquele indígena é impedido, através de uma doença, de não poder trabalhar fora, não poder sair, não poder estar junto… Vários pais de família chegaram a não ir para fora, principalmente dentro da comunidade. E aí o que tivemos que fazer? Tivemos que ajudar um ao outro, pedindo ajuda, trabalhando, fazendo algumas situações, para que nossa comunidade não chegasse a ficar tão fragilizada na questão da alimentação.
Mas aí tivemos também alguns povos que chegaram a nos ajudar nesse período de pandemia, tanto o município quanto as organizações indígenas também fizeram sua parte, como a APOIME e a APIB. Tivemos a FUNAI que também ajudou com algumas cestas básicas. Agora, seguimos todos os critérios do governo, fazendo toda uma situação. Foi assim: para aqueles que não tinham nada, que não tinham emprego, que não eram aposentados, para aqueles que realmente vivem apenas da agricultura, tivemos que realmente seguir todos esses critérios. Tentamos ajudar da melhor forma fazendo nosso trabalho social dentro da nossa comunidade.
“Ah, os índios tem um carro, tem uma equipe, os índios tem isso, tem aquilo…” Mas para ter isso foi uma grande luta.
Kamilla Fernandes: Historicamente os indígenas tem uma predisposição a problemas respiratórios. O senhor acha que teve um cuidado maior dos órgãos do governo de proteção ao indígena com relação a essa característica, evitando que os danos fossem maiores?
Pajé Celso: Sim, tivemos sim. Se formos pegar a PNASP, que é a política nacional de saúde indígena, ela está mostrando lá toda uma situação: a responsabilidade de todos eles. Da SESAI, Município e Estado. Então, se houvesse um trabalho mais voltado dentro das comunidades indígenas em discutir o que se acontece… Porque aí eu não coloco só a questão do cansaço, da questão respiratória. Temos vários outros problemas dentro das comunidades indígenas em termo da saúde.
Hoje somos ligados ao SUS, temos uma Secretaria especial indígena, mas essa secretaria não é a especialidade que a gente discutiu e que nós criamos a secretaria. A saúde indígena vem de lá do tempo da FUNAI, depois passou para a FUNASA, depois da FUNASA criamos a Secretaria Especial Indígena, para que fosse conduzida pelos próprios indígenas. Não para tentar fazer políticas dentro da saúde indígena, porque a gente quer políticas de saúde, não políticas de benefício aos grandes políticos que se tem. E hoje se você tiver uma ideia, a SESAI é um dos maiores órgãos do Brasil que recebem os maiores recursos. Mas esse recurso, que é para tratar a saúde indígena, ele não vem diretamente atender a quem está lá na ponta, ao indígena que está lá na ponta.
O recurso é dividido para as empresas que se tem, dos convênios que se tem. Você vê contratos de carro, contratos de CAPAI, de alimentação, de profissionais, de tudo. Então, junta todo um recurso ali e se divide esse recurso, que hoje está chegando a um milhão e quinhentos dentro da saúde indígena, que é dividido para 34 distritos do Brasil. Esse dinheiro é dividido para esses 34 distritos. São feitas as divisões para cada povo, então vem a situação dos contratos que se tem.
Quem ganha com isso são as grandes empresas. Por exemplo, eu tenho hoje, no Estado de Alagoas, um carro rodando 3.500km por 18.800km. Um carro rodar 3.500km… Nós temos comunidades, etnias, aqui no Estado de Alagoas e Sergipe à distância, por exemplo, de Maceió a Delmiro lá em Pariconha, no alto do sertão. São 700km ida e volta. Então você dá cinco viagens e o carro não tem mais condições de vir trazer o paciente dentro das cidades para fazer os seus exames. Então, se elas chegassem às pontas, de responsabilidade, cada um, tanto da SESAI quanto do município, do Estado, creio que poderíamos ter uma saúde melhor, de qualidade dentro das bases. Hoje nós somos SUS, nós só temos o nome de Secretaria Especial, mas os exames que a gente faz são pelo SUS, tudo é pelo SUS.
Já tivemos pessoas que marcaram exames com eles, vieram a falecer e o exame só chegou há um ano ou dois depois. Nós temos várias pessoas com problemas da alta complexidade, cancerosas, pessoas com AVC, de vários tipos e, às vezes, precisamos de uma simples tomografia e não temos… É meio difícil, muitas vezes o povo que está fora vê a coisa diferente. “Ah, os índios tem um carro, tem uma equipe, os índios tem isso, tem aquilo…” Mas para ter isso foi uma grande luta, porque a constituinte de 88 ela tá lá nos dizendo o direito nosso. E para estar lá foi uma luta grande do nosso povo. Para que a gente tenha hoje uma equipe médica dentro da nossa comunidade, para atender os nossos indígenas, foi luta.
Enfrentamos o Governo, lutamos… Você viu agora à pouco o que é que tá acontecendo com a PL490, com a questão do marco temporal. Isso foi votado, isso a gente tem a coragem, tem força, tem a vontade de ir em frente, de enfrentar o governo, de fazer a nossa luta para que a gente não tire o direito do nosso povo. Que isso continue, nós dentro das lutas, lutando, dando força, pedindo para que isso não acabe e, às vezes, pedindo ajuda a vocês, estudantes, que estão aí na luta, conhecendo o direito de cada um, porque hoje vocês tem um conhecimento grande dentro dos estudos de vocês e vocês leem a constituinte, leem todas as leis e sabe qual o direito dos povos indígenas.
Isso vem se acabando, porque cada governo que entra quer tirar o nosso direito a cada dia. Mas somos fortes, estamos aí a 521 anos de luta e vamos continuar. Enquanto tiver sangue indígena e tiver povo indígena vamos continuar nessa luta, porque nascemos para isso e vivemos para isso. Sempre vamos ter desafios a cada dia que passar nas nossas vidas.
“O que precisamos é a questão da terra, porque nós vivemos dela”
Kamilla Fernandes: Resistir, não é Pajé?! O isolamento social afetou todas as pessoas diretamente, principalmente os indígenas e sua economia. Então houve as necessidades de buscar trabalho fora das aldeias, de receber o auxílio emergencial que o Governo forneceu. O senhor acha que essa saída dos indígenas para cidade, para fora das aldeias, fez com que aumentasse o índice de contaminados?
Pajé Celso: É uma preocupação grande. Foi preocupante porque a partir da situação de estar isolado dentro da comunidade, porque nem todos trabalham fora e dentro da própria comunidade, o foco era dar um pouco a responsabilidade ao próprio Governo, porque se nós tivéssemos o espaço de terra, de trabalho, não precisávamos nem estar mendigando cesta básica, porque não precisaríamos.
O que precisamos é a questão da terra, porque nós vivemos dela. Tendo a nossa terra, nós não vamos precisar disso, pois vamos ter educação, saúde, tudo de qualidade. Vamos ter como sustentar nossas famílias. Então, a partir dessa situação onde não temos trabalho, não temos a nossa terra, o que acontece: a gente passa a ter um problema dificultoso dentro das próprias comunidades. O isolamento, estar isolado através da doença impacta o desenvolvimento daquela pessoa que tem que sair pra buscar o alimento, trabalhar fora pra sustentar a sua família. Isso impactou dentro das comunidades indígenas. Sentimos toda essa situação. Todas as comunidades sentiram.
Kamilla Fernandes: Pajé, a SESAI, infelizmente, ainda não tem tanto a força indígena presente na própria instituição. As lideranças tiveram participação ativa na criação das medidas de prevenção a COVID?
Pajé Celso: Enquanto representante do controle social, dentro das nossas comunidades indígenas temos lideranças, temos pajés, temos caciques e temos os conselhos locais de saúde. Eu enquanto representante deles, como presidente do CONDISI, todas as lideranças tiveram o envolvimento, elas sabiam da situação que estava acontecendo. Nós tivemos discussões para que elas participassem mais, para que o controle social, conselho, liderança, todos juntos tivessem esse envolvimento em cada comunidade, em cada etnia do Estado. E cobrar da própria SESAI a sua responsabilidade, porque é ela, em primeiro lugar, que está dentro das comunidades indígenas com seus profissionais. E nós cobramos muito disso.
Por isso que a gente se preocupou e houve a questão do Comitê envolvendo todas essas entidades que fizeram parte: Ministério público, FUNAI, SENAI, Conselho de Saúde, Secretarias Municipais. Todos eles fazendo parte e as lideranças também fazendo parte, discutindo isso.
“olha doutor, meu remédio é esse e eu quero que o senhor passe isso aqui pra mim.”
Kamilla Fernandes: Os indígenas solicitam que a medicina do povo seja mais utilizada? Hoje se vê um aporte maior da medicina do homem branco, no modelo biomédico de saúde. O senhor sente falta da medicina natural indígena no atendimento ao próprio indígena?
Pajé Celso: Sim, hoje são voltadas muitas situações dentro da medicina do não-índio, do branco, mas nós temos dentro das nossas comunidades as medicinas tradicionais. O nosso povo tem que voltar a se cuidar mais com a medicina tradicional e a gente tem como fazer isso, de trabalhar isso, de capacitar mais o próprio profissional em temos disso. Antigamente como éramos tratados dentro das nossas comunidades? Eu sou um pouco meio velho, lá atrás eu acompanhei essa situação.
Acompanhei minha mãe fazendo um chá pra mim, de um irmão estar doente e fazer um chá, um lambedor, dar um banho na criança, mornar uma água, saber qual era o remédio do mato que colocava pra banhar aquela criança que estava ali com uma febre, com alguma coisa, de ir na casa do rezador, de um parente que é rezador, de rezar naquela criança. E muitas vezes a gente deixa isso e se volta muito à medicina não indígena lá fora, porque muitas vezes já começa a acostumar.
O indígena hoje chega no posto de saúde, já vai com a receita e diz: “olha doutor, meu remédio é esse e eu quero que o senhor passe isso aqui pra mim.”. Então ele já se acostumou de estar a toda hora num posto de saúde. Eu acho que precisa sim ter mais capacitações, tanto com os profissionais da saúde, como com os conselhos de saúde, com a liderança fazendo esse papel de estar incentivando a sua comunidade a voltar também à medicina tradicional dentro das comunidades indígenas.
“E aqueles que escaparam foi porque correram, pra não servirem de escravos para os próprios fazendeiros”
Kamilla Fernandes: Hoje nas universidades não é muito falado, principalmente nas faculdades da área da saúde, sobre a saúde indígena. Não é uma questão levantada. Nós estudamos sobre crianças, adultos, idosos, sobre a mulher, mas não sobre o indígena. Isso acaba influenciando muito da formação do profissional. Os povo solicita que os profissionais conheçam melhor a medicina tradicional indígena?
Pajé Celso: Hoje nós temos vários processos seletivos para trabalhar na saúde indígena. O cara se forma lá em Técnico de Enfermagem, em Enfermeiro, a gente abre um edital, um processo seletivo para trabalhar com indígena, com as etnias do estado todo. Aí o cara vem, se inscreve, saindo de uma faculdade, estudando, passou por toda uma situação, aí quando vamos lá e partimos para as políticas de saúde indígena, o cara não tem conhecimento de nada. “Me fala um pouco sobre a Política Nacional de Saúde Indígena” e o cara não sabe nada.
Hoje as faculdades não trabalham essa situação, para você ver o quanto é importante que as faculdades se interessem em entender os povos originários desse Brasil e principalmente de Alagoas e Sergipe. Não há um interesse muito voltado aos povos indígenas, talvez muitos nem saibam. Como muitos alunos que já vieram na minha casa, muitos deles falavam: “Eu não sabia que aqui em Alagoas existia índio”, “Eu não sabia que em são Sebastião tinha uma comunidade indígena”, “Eu não sabia que em Feira Grande tem uma comunidade indígena”, “Eu não sei que lá em Joaquim Gomes tem o povo Wassu Cocal”. Então quer dizer que você passa por uma faculdade a faculdade não informa que o povo originário desse Brasil se encontra dentro desse Brasil? É complicado.
Acho que precisa trabalhar isso e às vezes quando eles veem o indígena, querem ver o índio “figurinha”, aquele índio que andava nu, que andava com uma palhinha na frente, com um cabelo grande, que não tem barba. Muitas vezes o índio que eles reconhecessem é o que está lá na Amazônia, no litoral Sul. Eu não tenho culpa se meu cabelo é ruim, se eu não falo mais a língua do meu povo, se eu falo só algumas palavras, eu não tenho culpa se eu criei barba, porque quem invadiu nossa terra foram eles.
Invadiram nossa terra, tomaram nossa terra, mataram nosso povo, estupraram, fizeram o que queriam, para que a gente aprendesse a se vestir da mesma maneira deles, para que a gente aprendesse a falar a mesma língua deles. E aqueles que escaparam foi porque correram, pra não servirem de escravos para os próprios fazendeiros, os latifundiários que tomaram o que era nosso. Mas aí com muita resistência o nordeste, na Baía da traição, lá em Porto seguro, aliás, foi onde aconteceu toda uma invasão dos Pataxós e hoje há um sofrimento também grande no Brasil todo, nos povos todos.
Hoje é uma mistura muito grande no Brasil de não indígenas, de pessoas que são casadas com índios. Eu acho que as faculdades precisam se envolver mais, mostrar o que nós temos nesse nosso Brasil, a riqueza que nós temos. Aqui nós temos indígenas, negros, ribeirinhos, quilombolas, nós temos toda a população do Brasil. Porém, somos discriminados, incluídos nas minorias, e as minorias sempre são discriminadas. Ainda existe um racismo grande nesse país que diz que tem que ser um país de igualdade, que isso nunca vai acontecer. É difícil, mas é isso. Não vamos baixar nossa guarda, sempre vamos estar lá metendo a cara e fazendo a nossa luta.
Kamilla Fernandes: Muito obrigada pela entrevista, foi enriquecedor ouvir a fala de uma liderança tão importante em Alagoas. Tenho certeza que isso vai enriquecer muito nossa comunidade acadêmica.
Pajé Celso: Eu que agradeço enquanto índio, enquanto liderança, enquanto representante do povo dentro da saúde indígena, que precisa melhorar muito em termos disso. E para eu ter toda essa situação precisa de espaço para o povo do estado de Alagoas e Sergipe. Hoje vivemos um retrocesso muito grande. E nós pedimos ajuda aos acadêmicos, a vocês. Se não fosse essa pandemia, que vocês tivessem vindo aqui na nossa área para conhecer como é a convivência do nosso povo, como é a moradia, do que eles vivem, a agricultura, como é a situação deles. Essa pandemia vai acabar se Deus quiser. O bom é quando estamos perto e vemos com os nossos olhos. Quero aqui agradecer a você e parabenizar pelo seu trabalho, pela sua preocupação. Nossas portas estão abertas para receber vocês a qualquer momento que quiserem vir.
Kamilla Fernandes, 24 anos, é acadêmica em Enfermagem pela Sociedade de Ensino Universitário do Nordeste (SEUNE), de Alagoas, e apoia a causa indígena.