Imagem mostra um homem soltando fumaça de cachimbo. Foto: Imagem: Rennan Peixe / Alma Preta

Conhecida também como Catimbó, o culto à Jurema mistura elementos afro-ameríndios e é mais difundido no nordeste do Brasil; a fumaça dos cachimbos, o respeito às ervas sagradas e os cânticos marcam os rituais

O período da colonização foi marcado por rituais e cultos ligados à cultura indígena e afrodescendente. Dentre as religiões que apresentam seus primeiros registros nesta época, está a Jurema Sagrada, também conhecida como Jurema Nordestina ou Catimbó, de origem afro-ameríndia.

Por meio de cantos, danças, infusões, cachimbos e dizeres sagrados, indígenas se colocavam em contato com seus antepassados e com outros seres do plano espiritual. Aos olhos dos colonizadores e dos jesuítas, tais práticas eram um grande empecilho à divulgação da fé cristã em terras brasileiras. É o que diz o historiador Rainer Souza.

“A Jurema, na verdade, é uma árvore da caatinga e do agreste que tem sua casca utilizada para a fabricação de uma bebida mágica que concede força, sabedoria e contato com seres do mundo espiritual. Dessa maneira, o uso da árvore desencadeia a formulação de uma experiência religiosa com o mesmo nome”, explica o historiador.

Para ele, os praticantes do catimbó são aqueles que se reúnem em terreiros ou casas para realizarem a ingestão da bebida feita a partir da árvore, empregando o uso de tabaco e buscando o contato com um mundo espiritual alcançado através do transe.

pouca documentação histórica que relate as práticas religiosas indígenas entre os séculos XVI e XX, o que deixou uma lacuna difícil de ser preenchida por completo no campo comum da história.

“Por outro lado, a permanência da forma de ser indígena na nossa língua, comida, imaginário e religiosidade, comprova o que os documentos não registraram — afinal eram escritos pelos colonizadores opressores brancos. Os terreiros de Jurema são os maiores livros orais acerca da cultura indígena e, de certo modo, africana. Eles demonstram a tradição em seus traços culturais e filosóficos, nos limites da antropologia, sociologia e da história”, informa um trecho do documento.

Os cânticos sagrados dos terreiros são um dos elementos mais fortes de preservação do “ser da matriz indígena”, na Jurema Sagrada. Neles é possível absorver a história desse povo cantada sistematicamente, em linhas melódicas que revelam a sua filosofia e imaginário, segundo o especialista.

O mestre em ciências da religião enfatiza que esta prática religiosa se manteve viva, “mesmo após todo o holocausto indígena que dizimou quase por completo as diversas etnias/civilizações deste país. Contudo, sua presença e força no mundo urbano das cidades do Nordeste, sobretudo, em Recife e Região Metropolitana, é muito forte”.

“É preciso separar os cultos”, diz iniciada em Jurema Sagrada

Em seu artigo, o historiador Alexandre L’Omi L’Odò enfatiza que a Jurema não é Umbanda. “Muitas pessoas as confundem, mas elas não podem ser confundidas. A Umbanda tem pouco mais de 100 anos de existência no Brasil, a Jurema já estava aqui séculos antes. Esta é a primeira diferença”, diz.

Além disso, o sacerdote destaca que a Jurema se utiliza de elementos próprios que não são ligados às práticas umbandistas, como o cachimbo, o tronco da jurema, os mestres e encantados.

A empresária Jainda Kelida Marques Silva – também psicóloga e terapeuta holística – é iniciada na Jurema Sagrada. Ela conta que passou a frequentar um templo de Jurema em São Paulo, o que despertou a vontade de se iniciar na religião.

Kelida explica que o processo de iniciação ao culto tem seus mistérios e ritos que não podem ser revelados em respeito aos mestres e entidades cultuadas, mas ela afirma que a iniciação é muito tranquila.

“São vários processos. Tem o batismo, as consagrações e só depois o tombo da Jurema. Os guias de Jurema trabalham de forma diferente dos de Umbanda e de Candomblé, portanto, é preciso separar os cultos para compreendê-los”, comenta.

Rezas, culto às ervas e a chamada “fumaçada” são alguns ritos praticados. No entanto, diferentemente do culto da Umbanda, as entidades juremeiras não dão passes, segundo Kelida. Os guias – entidades de incorporação – não dão consultas, como é comum na prática umbandista. Eles, de acordo com a psicóloga, entoam cânticos de acordo com a percepção dos mestres das necessidades de quem está presente nas rodas.

A mágica da Jurema Sagrada

A religiosidade da Jurema tem como tronco central uma árvore sagrada: a Jurema Preta (Mimosa hostilis ou Mimosa tenuiflora). “Esta árvore, que ao mesmo tempo é elemento essencial para o preparo da bebida sagrada de efeitos psicoativos, também é elemento mitológico que compõe o centro do mundo encantado das Cidades da Jurema”, segundo Alexandre.

Composta de saberes medicinais ancestrais, o cachimbo e o maracá são os elementos identitários mais visíveis materialmente da presença indígena nesta religião, explica o artigo assinado pelo historiador.

“Com forma e metodologia própria, os juremeiros e juremeiras se utilizam destes elementos de poder e ‘ciência’ para manipular magicamente o seu mundo. A fumaça é uma das forças mais importantes dessa tradição. Ela é a responsável pelo contato com o mundo espiritual e por ser a forma de poder mais eficaz da tradição”, diz o mestre em ciências da religião.

Kelida afirma que o culto à Jurema Sagrada lhe trouxe mais do que conhecimento: trouxe autonomia e autoconfiança para trabalhar com as entidades.

“Eu comecei com o benzimento, depois veio o tarot, o kardecismo, passei para umbanda, para o culto a Ifá e por último a Jurema, que me trouxe muita segurança. Tudo exige uma corrente, mas na Jurema é possível trabalhar sozinha. Eu amo resgatar toda essa ancestralidade”, pondera. “O culto da Jurema trouxe o meu contato com meus antepassados”, completa.

“Quem deseja se iniciar, deixo a dica de buscar um templo para conhecer e dar tempo ao tempo. Sinta a energia – pois a energia não mente. Toda iniciação é séria, então não vá em ritmo de aventura. Jurema é mistério, é segredo. Tenha a certeza no seu coração de que você irá respeitar o cachimbo”, finaliza Kelida.