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*Eliel Benites

 Como professor indígena, percebi a importância de recuperar os valores que orientam a nossa existência e educar nosso povo sobre sua luta e trajetória – um povo que foi historicamente invisibilizado e violentado.

Caminhar pelas florestas, nadar nos pequenos rios e acompanhar os meus avós na roça, este era o dia a dia no meu tempo de criança na aldeia Te’yikue, em Caarapó (MS). Meu nome é Eliel Benites, sou indígena da etnia Guarani e Kaiowá e professor Doutor da Faculdade Intercultural Indígena (FAIND/UFGD).

Quando criança, não pensava que um dia a educação pudesse mudar o destino da minha trajetória e me levar para um caminho grandioso lutando pelos direitos do meu povo. Meus pais achavam que a escola me traria um futuro melhor, portanto, desde cedo, estudei na instituição da comunidade que ensinava a falar a língua portuguesa. Talvez naquele momento eles estivessem certos, mas depois entendi que as condições de viver bem como indígena foram retiradas de nós há muito tempo, quando as nossas terras foram tiradas dos nossos ancestrais, inviabilizando a felicidade como um todo.

Conhecendo as nossas histórias, geografias, cosmologias e todos os conhecimentos dos ancestrais no contexto da escola indígena e fora dela, percebi que as dificuldades de viver na aldeia foram impostas pelos colonizadores, tirando a dignidade das pessoas e, por isso, na mentalidade dos meus pais, viver bem era estudar e deixar a aldeia. Percebi, então, que a educação era muito mais do que eu pensava. Era sobre educar um povo sobre sua luta e trajetória, um povo que foi historicamente invisibilizado e violentado pelas sociedades não indígenas coloniais.

Professor indígena

Com o passar dos tempo, as coisas ficaram mais difíceis. Eu tive que estudar fora da aldeia, na escola da cidade, para terminar meu ensino fundamental, porque na comunidade só tinha estudo até os quatro anos. Tive que aprender, na prática, a viver fora do contexto da aldeia. Assim terminei o ensino médio na cidade, conhecendo realidades diferentes, mas com muito respeito e admiração pelas coisas boas que vivenciei.

Quanto mais eu crescia, mais a responsabilidade pesava e mais perto da educação eu ficava. Em 1997 comecei a lecionar, atuando como professor tradutor entre a língua portuguesa e a língua guarani. Um ano depois, iniciei como professor indígena, assumi uma sala de aula para alfabetizar 40 alunos na escola municipal Ñandejára-Polo, que fica na própria aldeia de Caarapó.

Lá, até então, só se alfabetizava as crianças na língua portuguesa. Comecei a alfabetizar na língua guarani. Chegando às férias de julho, naquele ano de 1997, lembro que um aluno já lia e escrevia, mas tudo era na língua guarani. Eles tinham as mãos duras para escrever, não conseguiam porque eram traumatizados com as professoras não indígenas que brigavam muito com eles, mas vi que para desenhar eram fantásticos, exímios artistas. Desenhavam as florestas, os animais, as árvores, os rios e as casas da aldeia, e eu perguntava para eles como era o nome de cada desenho. Diziam o nome e do lado escreviam, e assim mais de 40 alunos foram alfabetizados naquele ano.

Essa experiência de escola indígena, aos poucos, me fez ficar importante, me aproximando dos mais sábios da comunidade, que chamamos de ñanderu (os anciões) e ñandesy (anciã). Quando comecei a estudar nas licenciaturas interculturais (cursos específicos para a formação dos professores indígenas), como Ára Verá (tempo espaço iluminado) e Teko Arandu (viver em sabedoria), entendi que esses saberes poderiam ser registrados como trabalho acadêmico, colocados como temas de pesquisa e para fazer trabalhos de conclusão de cursos, dissertação e tese, como acabei de fazer em 2021.

Mas no contexto em que vivemos, aqui no estado de Mato Grosso do Sul, onde a ideia e a postura anti-indígena (com vários massacres das lideranças) são fortes, defender os direitos do nosso povo está baseado na retomada dessas memórias dos ancestrais. Porque entender o processo da resistência depende do processo do registro desses saberes, recuperando as memórias sobre as nossas terras, nossa cultura, cosmologias e todo conjunto de valores que orienta a nossa existência. Assim, a importância de ser professor indígena aumenta. Não se trata apenas de dar aulas para 40 alunos, mas para um povo, que foi historicamente invisibilizado e violentado pela sociedade não indígena colonial.

Luta para que memórias não sejam esquecidas

De 1997 até hoje, avançamos muito em relação à educação escolar indígena. É comum encontrar escolas e professores indígenas em todas as aldeias em Mato Grosso do Sul, mas nos últimos tempos houve retrocessos. Com o atual governo, os investimentos na educação escolar indígena foram cortados nos orçamentos, afetando alunos, acadêmicos e professores de diferentes formas, inviabilizando a educação escolar indígena como um todo e impedindo que indígenas conheçam suas histórias e o seu passado. Penso que é uma estratégia do governo, porque, tirando o direito de estudar, as pessoas ficam sem saber sobre a sua história e realidade, aceitando com facilidade as ideias dos dominantes que as exploram e que as violentam.

Vivenciar essas grandes trajetórias no contexto da educação escolar indígena e também acompanhar a luta e resistência dos grandes líderes guarani e kaiowá proporcionou, ao longo do tempo, um olhar mais holístico sobre a questão da luta do nosso povo. A luta e a esperança, que outrora orientavam os grandes líderes para a resistência, hoje carrego na minha atuação para que as memórias sobre os grandes territórios não sejam esquecidas. Para que todas as políticas indigenistas sejam de fato a recomposição contínua dos valores tradicionais que foram despidos de nós ao longo do processo histórico de violência praticada pelos colonizadores até os dias de hoje.

Por muito tempo, lecionei não só para alunos, mas também para professores indígenas, pensando em inserir cada vez mais o nosso povo no meio acadêmico. Em 2013 fui efetivado como professor permanente de dedicação exclusiva na FAIND/UFGD e, em 2021, fui eleito pela comunidade acadêmica da FAIND para assumir o cargo de diretor da unidade. Um marco, não só na minha carreira profissional, mas na história de todos os indígenas que lutam pelo conhecimento e pela educação do nosso povo.

Vivo pensando que todas as crises da sociedade ocidental moderna, com suas grandes ideias de desenvolvimento e tecnologias, são frutos da ideia do ser humano (não indígena) como centro do mundo e do esquecimento da importância do planeta que está em conexão múltipla, permitindo a emergência da diversidade dos seres. Nós, povos indígenas, somos os guardiões das florestas, dos rios, da terra e de toda a ecologia que permite a existência da diversidade da vida e, por isso, não devolver a nossa terra é como aprisionar e envenenar a nossa mãe. Todas as ações/políticas e e formação visam a nossa resistência, luta e a possibilidade de reaver o nosso grande território tradicional para que a memória e os guardiões voltem a conduzir a existência do nosso povo Guarani e Kaiowá.

 

Vozes da Educação é uma coluna quinzenal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do Salvaguarda no Instagram em @salvaguarda1

Este texto foi escrito por Eliel Benites, de Dourados (MS), e reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.