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Indígenas sofrem para preservar suas culturas no solo da primeira capital do país, que um dia pertenceu aos seus antepassados

Apoiada na mureta da varanda de sua casa – uma moradia improvisada entre escadas e vielas de uma comunidade de Salvador –, a estudante de farmácia Vanessa Braz da Conceição, 35 anos, mira o firmamento para se conectar à natureza na selva de pedras soteropolitana. Indígena Pataxó da região de Coroa Vermelha, extremo sul do estado, ela se conecta às suas origens por meio dos astros: “Fico horas aqui, namorando com eles”, diz, sobre o sol, a lua e as estrelas.

Da janela de sua casa simples, onde vive sozinha, o amontoado de concreto de casas não poderia representar um contraste mais gritante com sua aldeia natal, que fica próxima à zona urbana de Porto Seguro – onde,  por sinal, os indígenas receberam os primeiros invasores do Brasil, em 1500.

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“Não existe índio que não tenha uma ligação forte com a natureza”, afirma Vanessa Pataxó, que também enxerga beleza no cenário urbano, como os prédios ao fundo do grande vale de casas populares que é a comunidade onde mora, encravada no bairro da Federação, na capital baiana, uma localidade de geografia acidentada, com ladeiras e escadarias, como boa parte da metrópole. “Prefiro a natureza, mas também acho a cidade bonita”, diz. No dia a dia, Vanessa lida com substâncias químicas da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Sempre apreciou a alquimia das ervas para combater os males do corpo. “Até os professores me perguntam sobre as folhas”, conta.

“Prefiro a natureza, mas também acho a cidade bonita”,  Vanessa Conceição, da etnia Pataxó e estudante da Ufba

O último censo do IBGE aponta que, em 2010, 7.552 indígenas habitavam os 20 subdistritos de Salvador. Parte, como Vanessa Pataxó, ainda está fortemente ligada às aldeias onde brotaram suas raízes. Outros tantos, provavelmente autodeclarados, perderam laços com sua gente. Muitos indígenas – conectados às suas origens ou não – residem no bairro da Federação. Além de estar próximos à universidade, foram atraídos uns pelos outros. “A gente se ajuda”, explica Vanessa.

O mesmo censo aponta que 579 indígenas residiam, em 2010, no subdistrito de Vitória, do qual faz parte o bairro da Federação, agora informalmente considerado “território indígena”. Na época do censo, o subdistrito abrigava o sexto maior contingente de habitantes indígenas oriundos de diversas etnias, em uma lista que era, então, liderada pelos subdistritos de São Caetano (1.208 indígenas), Pirajá (1.131) e Amaralina (827 indígenas). Em todos esses, contudo, os moradores indígenas representavam menos de 1% da população total.

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Não há levantamento que demonstre o aumento da concentração de indígenas próximo à universidade, mas é impossível negar que o campus atrai estudantes do sistema de cotas. Atualmente, segundo dados da própria UFBA, entre os quase 28 mil estudantes, 205 são indígenas. O desempenho acadêmico desses estudantes é o mesmo dos demais. “As cotas cumpriram seu objetivo de democratizar o acesso e isso não impediu os alunos indígenas de ter um bom desempenho”, afirma o pró-reitor de graduação, Penildon Pena.

Não que as batalhas a serem vencidas na cidade grande se limitem a tirar boas notas: a primeira delas, na verdade, é conseguir preservar preceitos culturais. Mas talvez a mais difícil seja enfrentar o preconceito de quem se depara com indígenas de calça jeans, smartphones e um biotipo diferente daquele apresentado nos livros de José de Alencar, autor de O Guarani, publicado no final do século 19. “A gente sempre enfrenta questionamentos: ‘por que sua pele é clara e o cabelo não é totalmente liso?’”, exemplifica Vanessa Pataxó.

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Os indígenas da área metropolitana de Salvador buscam maneiras de marcar território em meio à capital, onde, segundo o último censo do IBGE, oito em cada dez pessoas são negras. Para tanto, além dos traços da indumentária, usam as pinturas corporais. Vanessa Pataxó chega pintada nos lugares e as pessoas se encantam: “Alguns acham que é tatuagem ”. A conexão mais difícil é com a língua da sua etnia, o patxohã, do qual apenas aprendeu palavras soltas.

“‘Maion’ a gente fala que é o sol; ‘Terré ’ que é a chuva;‘Werymerrye’ a gente fala que é o amor; a flor é a ‘tiarra’; o café que é o ‘torron’”. Sua relação mais estreita é com as plantas. Prestes a se tornar farmacêutica, ela busca primeiro se curar com os chás. Encontra muita coisa nas matas do próprio campus universitário. Se for infecção urinária, gosta de tomar um chazinho de tansagem (Plantago major, planta medicinal bastante popular) ou de milho verde quando é época de milho. Em caso de “piriri” (dor de barriga), usa o brotinho da goiaba.

As dificuldades para que os indígenas se adaptem ao meio urbano é preocupação de uma das maiores especialistas em estudos da história dos indígenas no Brasil. Pesquisadora do tema desde 1971, Maria Hilda Paraíso, cientista social e antropóloga da UFBA, afirma que uma das formas de tornar essa empreitada menos complicada é o convívio com outros indígenas. “Difícil enfrentar a mudança de hábitos e as formas das relações sociais hierarquizadas. Quando convivem com outros índios isso se torna, digamos, menos doloroso”.

A LGBTFOBIA foi imposta pelo homem branco

Estudante de letras e artista visual, Sandy Eduarda, 27 anos, também encontrou nos estudos uma forma de resistência. Yacunã, seu nome indígena, é da etnia Tuxá, com origem no município de Rodelas, norte da Bahia. A própria comunidade a incentivou a cursar o ensino superior. “Eu precisava sair para me instrumentalizar com o conhecimento do não indígena e poder ajudar o meu povo na luta pelo território”, explica.

“É um imaginário muito estereotipado. Falam: ‘como assim você é indígena? Você tá na universidade, usa calça jeans e tênis'”, Yacunã Tuxá, estudante da Ufba e ativista LGBTQIA+

Maria Hilda Paraíso considera a presença indígena nas cidades e nas universidades uma forma de manter viva a cultura. Em muitos casos, eles não só resgatam informações relevantes sobre seus povos como se tornam agentes transmissores de conhecimentos ancestrais. Só há um detalhe: todos esperam que a universidade seja um espaço mais acolhedor que outros. Mas, na prática, nem sempre é assim.

Rutian Pataxó, 30, é formada em economia pela Ufba e hoje estuda direito pela mesma instituição (Raul Spinassé/Mongabay)

O Centro e a periferia de Salvador eram habitados pelos povos originários até a urbanização

Yacunã Tuxá vivencia dentro da UFBA – e também fora dela – a mesma luta que seu povo enfrenta há mais de 30 anos, desde que a construção de uma barragem expulsou os Tuxás da aldeia de origem. Com o fim da antiga Rodelas, alagada, a aldeia Tuxá passou a viver em uma área não mais demarcada. Hoje, em Salvador, Yacunã Tuxá se sente um peixe fora d ‘água, como um ‘matrinxã’ retirado do Rio São Francisco, que, aliás, banha a sua Rodelas.

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No Alto das Pombas, comunidade que fica no mesmo bairro da Federação, Yacunã Tuxá, Lésbica, ativista do movimento LGBTQIA+, tem dois amores. Um deles é a namorada, Itayná Ranny, o outro é justamente a luta pela aceitação da presença indígena na capital da Bahia. “É um imaginário muito estereotipado. Falam: ‘uai, como assim você é indígena? Você tá na universidade, você usa calça jeans, você usa tênis’”, diz.

Por causa de sua orientação sexual, outra briga foi conquistar espaço na própria aldeia. “Eu bati o pé e falei: ‘é isso mesmo’. Não abri mão da minha cultura para vivenciar minha sexualidade, sabe?”. Integrante do Coletivo Tibira, primeiro de indígenas LGBTQIA+ do Brasil, concluiu que, na verdade, a LGBTfobia não faz parte da tradição indígena. “Não é um discurso nosso e nem da nossa cultura. É algo que foi imposto pelo branco”.

“Quando os indígenas entenderam que estavam sendo explorados, começaram as rebeliões. O indígena era o negro da terra” , Fabricio Santos, especialista em história dos povos indígenas

Em Salvador desde 2015, Yacunã Tuxá é uma das filhas da terra que ela mesma pintou em uma série de obras de arte – Yacunã significa ‘filha da terra’ em Dzubukuá, a língua de sua etnia. Ou seja: ela sabe que todo e qualquer espaço no Brasil também lhe pertence: “Aqui onde estamos pisando um dia foi terra indígena”. A cidade também foi o lugar de seus ancestrais.

O processo de urbanização foi forçado

De fato, não só o centro como boa parte dos bairros periféricos e o chamado Subúrbio Ferroviário de Salvador foram habitados por indígenas desde o início da colonização. Eles tiveram seus espaços invadidos para que a primeira capital do Brasil fosse construída. Por isso, é controverso dizer que estão se inserindo atualmente no meio urbano. Na verdade, eles foram forçadamente e desde sempre urbanizados.

Fabricio Lyrio Santos, especialista em história dos povos indígenas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), diz que a primeira ideia a ser desconstruída é a de que os colonos fundaram uma cidade em um território vazio. “Isso aqui não era uma ilha deserta. Era um território habitado por uma diversidade de povos ”, ensina. Segundo ele, a região pertencia a diferentes grupos tupinambás, povos complexos e com dinâmicas próprias.

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“Quando os indígenas entenderam que estavam sendo explorados, começaram as desavenças e rebeliões. É aí que, em 1545, Portugal instituiu

um governo geral e começou a planejar a construção da primeira cidade na colônia. Muitos indígenas não aderiram às rebeliões. Fundada em 1549, Salvador também se ergueu tendo os povos originários como os principais trabalhadores braçais, em uma aliança que, na verdade, representou uma forma de escravidão. “O indígena era o negro da terra”, define Lyrio.

Nesse processo, muitos fugiram e outros tantos morreram assassinados ou doentes pelo contato com os não-indígenas. Logo que os portugueses chegaram, havia cinco ou seis aldeias na região onde hoje é o centro de Salvador, em bairros como Campo Grande, que dá nome ao tradicional circuito do Carnaval da Bahia, e no próprio Centro Histórico, onde fica o Pelourinho. Em toda Salvador e região metropolitana, acredita-se que existiram quase 30 aldeias e aldeamentos.

 “Apesar de estar numa cidade negra, a universidade ainda é de brancos, homens e héteros” , Rutian  Santos, estudante da Ufba e da etnia Pataxó

Muitos desses locais, que hoje são bairros e comunidades, guardam seus nomes indígenas de origem tupi ou tupi-guarani: Itapuã (pedra que ronca), Abaeté (homem sábio, verdadeiro), Pirajá (viveiro de peixes), Periperi (região de muitas plantas). “É preciso diferenciar aldeia de aldeamento. Os aldeamentos eram administrados pelos brancos jesuítas”, explica Maria Hilda Paraíso.

Um documento atribuído a José de Anchieta remete a 16 mil indígenas aldeados pelos jesuítas em Salvador no ano de 1561. O mesmo documento diz que esse número chegou a 40 mil indígenas entre os anos 1560-1580 e um total de 14 aldeias. O processo de “urbanização” dos indígenas em Salvador atingiu seu ápice a partir de 1756, quando o Marquês de Pombal extinguiu antigos aldeamentos e os transformou em vilas. No fim do século 19, os aldeamentos foram extintos e os indígenas desconsiderados de seus direitos.

Para sobreviver, indígenas trocaram informações com a cultura afro-brasileira

Depois de séculos de exploração, violência, doenças e escravização, os indígenas seguem lutando por território onde hoje existe uma metrópole com 3 milhões de habitantes. O objetivo de muitos indígenas que vivem em Salvador é buscar formação especializada. Poucos são tão obstinados nessa missão quanto Rutian do Rosário Santos, 30 anos. Integrante da segunda turma de cotas indígenas da UFBA, moradora de Salvador desde 2008, Rutian Pataxó é formada em Economia e hoje estuda Direito na mesma universidade.

Para ela, que também veio de Coroa Vermelha, indígenas precisam estudar e se aprimorar: “Apesar de estar em uma cidade negra, a universidade ainda é de brancos, homens e héteros. Quando cheguei, existia uma barreira invisível entre cotistas e não cotistas”.

Rutian Pataxó explica que a definição do que seriam indígenas em áreas urbanas é controversa até mesmo dentro do movimento indígena. São os que moram nas cidades e não têm ligação com as aldeias? São os que mantêm laços com as origens e foram morar na cidade? Ou simplesmente os que vivem nas chamadas aldeias urbanas, próximas às metrópoles?

A luta pela preservação da cultura une a todos e, nisso, a africanidade da primeira capital do Brasil ajuda. Rutian Pataxó e outros indígenas bebem na fonte da negritude para manter hábitos. Na região da Cidade Baixa, que margeia a Baía de Todos os Santos, descobriram a Feira de São Joaquim, onde encontram utensílios e ingredientes usados nas religiões de matriz africana, por exemplo. Não encontram a folha da patioba, mas descobriram a da bananeira. Também compram utensílios de barro para fazer suas comidas tradicionais.

Apesar de marcada pelas tensões do processo de colonização e escravização, sempre existiu uma troca dinâmica entre negros e indígenas. Com o tempo, as duas culturas exploradas se fundiram, em alguns casos até religiosamente. “Isso se expressa de forma marcante no ambiente dos candomblés de caboclo”, exemplifica Lyrio.

Na busca por cada vez mais espaço, os indígenas tentam se manter coesos. Por isso, tudo é feito em grupo. “O que mais impressiona na cidade é o egoísmo, a individualidade. O espírito coletivo é uma coisa que a gente aprende dentro de casa. Sempre estamos juntos ”, compara Rutian Pataxó.

* Esta reportagem, originalmente publicada no site Mongabay, em 11/5/21, faz parte do especial Indígenas nas Cidades do Brasil e recebeu financiamento do programa de jornalismo de dados e direitos fundiários do Pulitzer Center on Crisis Reporting.