*João Paulo Charleaux

Reivindicando soberania sobre terras ‘invadidas’ por europeus, etnia mapuche lança legenda própria e luta por território autônomo reivindicado desde o século 19

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REPRESENTANTES MAPUCHE PROTESTAM CONTRA PRISÕES EM VALPARAISO

Há pelo menos 155 anos, os indígenas da etnia mapuche lutam para reconquistar o que consideram um território roubado pelos colonizadores europeus no sul do Chile. Nessa luta, fazendas, igrejas, carros e casas são queimadas, e os responsáveis pelos ataques são levados a julgamento com base numa legislação de exceção. Alguns indígenas são julgados como terroristas.

Desde 1861, essa dinâmica vem se repetindo com poucas variações. Mas um fato ocorrido no dia 21 de abril pode mudar a forma como os mapuche (a palavra não tem plural no idioma mapudungun) tentam fazer valer suas reivindicações – eles criaram um novo partido político e prometem retomar as terras “ocupadas”, nas urnas.

 

Desafio eleitoral em outubro

A nova legenda se chama Wallmapuwen e significa em português “habitantes do país mapuche”. As 1.300 assinaturas necessárias para criar o partido foram apresentadas em abril e aceitas oficialmente pelo Serviço Eleitoral do Chile no dia 2 de junho.

O primeiro grande teste para a causa mapuche será no dia 23 de outubro, quando os eleitores vão às urnas escolher os alcaldes (equivalentes aos prefeitos) e consejales (equivalentes a vereadores) de todas as 345 comunas do Chile.

O partido Wallmapuwen não tem nenhuma pretensão nacional. A pretensão deles recai inicialmente sobre as 32 comunas que compõem da Região da Araucania (equivalente, no Brasil, a um Estado), no sul do Chile.

Um país autônomo

Os mapuche consideram que a Araucania – assim como as regiões dos Lagos e dos Rios, imediatamente mais ao sul – são suas terras ancestrais e acusam, até hoje, os colonizadores e as sucessivas levas de imigrantes de terem invadido e ocupado seu território.

A reivindicação não é apenas simbólica ou retórica. O Wallmapuwen realmente têm uma plataforma separatista dp Chile e se coloca, nesse sentido, contra o Estado chileno, pregando a configuração de um novo país autônomo, com presidente, língua e leis próprias.

“Nós falamos de um estatuto autônomo. Esse estatuto deveria reconhecer este território como historicamente mapuche. Além disso, queremos que exista a figura de presidente de Wallmapu e uma assembleia legislativa que permita criar leis dentro do território”

Ignacio Astete Nahuelcoy

Presidente do Wallmapuwen

Preconceito, pobreza e violência

FOTO: IVAN ALVARADO/REUTERS – 03.06.2011

Protesto mapuche em Santiago do Chile

MANIFESTANTES MAPUCHE DISCUTEM COM A POLÍTICA EM PROTESTO EM SANTIAGO

 

Apesar das grandes pretensões, os mapuche sabem das dificuldades que terão pela frente. A primeira delas é econômica. Como acontece com muitos povos nativos no mundo, os mapuche ocupam as camadas economicamente mais baixas da sociedade chilena, com pouca representatividade nas estruturas sociais, políticas e econômicas do país.

“Queríamos ter um lugar, mas não temos dinheiro. Às vezes [para nossas reuniões] nos emprestam [a sede de] alguma associação de moradores, escritórios ou mesmo as casas dos próprios militantes”, diz Nahuelcoy.

As décadas de enfrentamento com os colonos também criaram uma cultura carregada de preconceito contra os mapuche no sul do Chile. Muitos cidadãos da Araucania – e, em consequência, muitos eleitores chilenos dessa região – veem os indígenas como membros de uma comunidade arredia e fechada, que tem pouco interesse ou mesmo capacidade de se enquadrar nas estruturas formais de poder.

É nesse espaço que o novo partido se insere, ainda carregado de fragilidades e desconfiança.

Sistema expele revolucionários

O cientista político chileno Patricio Navias explicou ao Nexo que não há nada que impeça a formação de um partido separatista no Chile. As restrições são outras, vinculadas a resquícios da ditadura de Augusto Pinochet, que governou o país de 1973 a 1990.

Até 1989, a Constituição chilena proibia a existência de partidos marxistas. Tanto o Partido Comunista quanto o Partido Socialista – da atual presidente, Michelle Bachelet – não podiam sequer existir.

A reforma constitucional feita já na redemocratização manteve restrições anacrônicas, segundo Navias. Ele cita como exemplo um fato ocorrido em 2015, quando jovens chilenos tentaram registrar um novo partido, chamado Revolução Democrática. A Justiça barrou a legenda por causa da palavra “revolução” no nome. “Isso provocou muita piada, dado que a outra palavra que compunha o nome do partido era ‘democracia’. Então, a pretensão era justamente de defender mais democracia, não o contrário. Era um partido democrático, que pregava a revolução democrática. Isso mostra que ainda há vestígios da ditadura, que tentam restringir a presença de partidos revolucionários.”

“São inconstitucionais os partidos, movimentos ou outras formas de organização cujo objetivo, atos ou condutas não respeitem os princípios básicos do regime democrático constitucional, ou que procurem o estabelecimento de um regime totalitário, assim como façam uso da violência, a proponham ou a incitem como método de ação política”

Artigo 18, inciso 5º da Constituição do Chile de 1980, com as reformas de 1989

Em relação aos mapuche, é como se o assunto passasse abaixo do radar dos legisladores da época. Não há qualquer restrição, mesmo com o partido defendendo a cisão do país.

O Chile tem um sistema político centralizado. Os governadores das regiões – equivalentes aos Estados brasileiros – são indicados pela presidente, não são eleitos. Navias considera que esse é outro elemento que dificulta a representatividade política dos mapuche.

Ele faz, entretanto, uma ressalva: “Mapuche não necessariamente votam em mapuche. A plataforma desse novo partido é bem radical e nada garante que concentrará os votos dos mapuche, que podem continuar escolhendo candidatos de partidos tradicionais, como qualquer chileno.”